(por Alexandra Carvalho)
Fotografia de Alexandra Carvalho (2006)
Durante 25 anos, morei na rua do Cemitério de Benfica.
Havia quem não compreendesse como ali conseguia viver, janelas a darem directamente para uma visão plena das campas e sarcófagos.
Apesar de não conseguir ainda aceitar o conceito de morte, a mim, sinceramente, nunca me fez impressão morar em frente ao Cemitério de Benfica, porque considero que é dos vivos (e não dos mortos) que temos que ter medo.
O Dia de Todos os Santos (a 1 de Novembro) e o Dia de Finados ou Dia dos Mortos (a 2 de Novembro), em que as pessoas vão aos cemitérios para rezar pelos seus mortos, é que sempre me fizeram alguma aflição, quando morava perto do Cemitério de Benfica, pela forma quase obrigatória com que me parecia que algumas pessoas ali se deslocavam (evitando lá ir no resto do ano).
A este ‘post’ da Alexandra Carvalho, a tentação de responder é grande. Portanto, cá fica, minha amiga :)
ResponderEliminarSem sombra de macabras mitologias, tenho de confessar que gosto de cemitérios. E acredito que tantos, como eu, gostariam se se dessem ao trabalho de os visitar com o mesmo espírito que o fazem a uma Igreja ou a um Museu. São testemunhos. E por esse país afora, de norte a sul, existem exemplares lindíssimos da espécie.
Talvez a minha relação com a morte, algo moldada por agentes externos, tenha acabado por se encontrar num certo e natural fascínio por lugares ajardinados, quase sempre muitíssimo bem cuidados, onde o silêncio sabe a convite de paraísos e a luz branca reflectida de paredes e lápides tornam os dias mais lúcidos e simples.
18 anos de arqueologia, e retomando o fio à meada, deram-me da morte um outro conceito, paulatina e inconscientemente instalado no local habitual dos medos: pragmatismo. De tanto as escavar, pincelar, pôr a céu descoberto com o maior dos cuidados, que o ar e a falta de suporte da terra são já dano bastante, as ossadas e seus sucedâneos passaram a ser o meu retrato paradigmático da morte. Às vezes ossos, apenas, às vezes espólio de acompanhamento também, outras somente cinza.
Uma ideia da morte que informa e enforma também a de Vida: no final, restamos inapelavelmente iguais; ossos, se tanto... E então, porquê criar distância no que nasce e morre perto?
Mas, e acreditem ou não, a paz que anda agarrada ao silêncio que mora para lá de cada portada do fim é incomparável. Igual sensação só mesmo nas alturas despovoadas da montanha, ou na rasura imensa da planície, onde nos percebemos, subitamente, tão pequenos e impotentes perante o alcance daquela magnitude que, na melhor das hipóteses, apenas conseguimos imaginar.
No Alentejo, mais propriamente no Crato, a Igreja “Maior” e o Cemitério, situados no centro histórico da vila, perfilavam-se a escassos metros da minha casa. Dos degraus daquele velho e altivo templo, costumava eu tentar abarcar todo o alcance da planície, com o insucesso expectável, olhos a esbarrar constantemente em horizonte. Os meus cães também gostavam de se estender no átrio, ali, em meio ao branco irrepreensível de muros e casas, no calor da tarde alentejana, que parece tornar o mundo deserto. Depois rumávamos, então, ao pacato vizinho mesmo ao lado, sentávamo-nos junto à morada última de um meu tio querido, e puxando eu de caderno e caneta, walkman em acção e auscultadores bem ajustados, ali ficava, em alheamento total, rabiscando memórias que o silêncio ia soprando. Cigarro presente, garrafa de água sem falta, e a vida, que no caso era a minha, por entre a presente ausência dos calados, lá se ia compondo em monólogos com rosto de letras, enquanto, inocentemente alheia, a tropa canina já sonhava.
Nada tenho, enfim, a temer dos Mortos, que às vezes, quem sabe, até olham por nós, lá de um lugar a que não sei o nome. Como a Alexandra, é nos Vivos que encontro a necessidade de me acautelar. Às vezes, também. E de alguns, apenas. O segredo está em reconhecer o que nada nos acrescenta e muito nos pode retirar, a que muitos chamam o mal, e a que eu, uma vez mais, ainda não encontrei a designação que me pareça mais justa, por me ser mais lógica.
Nomenclaturas à parte, facto é que não sabemos, ou eu não sei, em que almas ele se acoita no seu pior registo. Mas sei que nas mortas, em Cemitérios ou algures, seguramente, não é.
Obrigada, Xana, pelo teu bonito e invulgar texto.
Abraço aos Amigos deste cada vez mais surpreendente e compensador lugar de todos nós, que é o Retalhos de Bem-Fica.
Ana Vassalo
Os cemitérios são excelentes locais de recolhimento e meditação! Vivi muitos anos paredes meis com o cemitério de Benfica, exactamente na Quinta do Charquinho, antes da construção do Bairro da Quinta do Charquinho! Entes queridos no Cemitério de Benfica, irmãos e esposa! Sou frequentador, quando posso, dos cemitérios! Dá-me um certo apaziguamento! Gosto de ver as lápidas e as incrições nelas gravadas. Local óptimo, também, p'ra namorar...Para armar aos pássaros, também, com ratoeiras e formiga d'asa, tal como fazia o António da Farmácia já que, os bandos de pardais afluem a esgravatar a terra revolvida das sepulturas à procura de bichinhos...
ResponderEliminarQuanto à Rua Cláudio Nunes, perdeu toda a vivacidade quando os funerais deixaram de circular por aquela via! Hoje, a Rua Cláudio Nunes esmoreceu! Nos seus tempos áureos, era uma rua fantástica: funerais a toda a hora e o grande negócio no regresso: a visita às capelinhas! Na tasca do Gaspar, na Casa de Pasto junto às escadinhas e, especialmente na conceituada Casa de Pasto "Na volta cá te espero" do galego sr. Emílio Perez, pai do meu amigo João Perez! Os melhores vinhos e petiscos na volta do cemitério de Benfica! Hoje, a tradição já não é o que era noutros tempos!