Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2014)
Capítulo V - A população de Lisboa rendeu-se ao prodigioso Bonifácio e invadiu a Avenida da Liberdade.
(por Fausto Castelhano)
(por Fausto Castelhano)
A oriente, o espaço celeste clareava em tonalidades avermelhadas dissipando, pouco a pouco, os derradeiros negrumes da madrugada ainda antes do sol romper no horizonte e aos poucos incendiar o céu azul, já Augusto Castelhano retornava a casa depois da rotina diária exercida na vacaria, isto é, medir e atestar os potes metálicos com a capacidade de cinquenta litros do leite obtido na “ordenha da noite” extraídos das glândulas mamárias de cerca de três dezenas de vacas leiteiras de superior produção, faina confiada ao diligente e hábil vaqueiro Manuel Rodrigues, o Ti’Conde da nossa infância e que aqui evocamos com imensa saudade.
Daí a breves instantes, os dois leiteiros que possuíam contractos de fornecimento de leite chegariam com as suas carroças de tracção muar a fim de recolher e posteriormente distribuir pelas clientelas, porta-a-porta, o suco leitoso de óptima qualidade da Quinta de Montalegre.
Seguia-se a alimentação do gado (feno ou erva consoante a estação do ano, suplemento alimentar baseada em misturas de sêmeas e farinhas de alfarroba ou outras, água), limpeza de manjedouras e coxias, substituição de palha seca das camas, etc.
Ora, quando Augusto Castelhano se aprontou para tragar o frugal pequeno-almoço na sua residência localizado a pouco mais de meia centena de passos dos estábulos, já Maria Augusta se encontrava na cozinha assoberbada na intensa labuta doméstica, mas aguardando a chegada do marido Augusto que, tal como era hábito, lhe passava p’rá mão a pequena vasilha de alumínio, “a leiteira”, a transbordar de leite morno acabadinho de mungir da “teta da vaca”, elemento de valor nutritivo essencial na preparação da primeira refeição do dia.
Poucos momentos passados e já com a passarada a chilrear por todo o lado, o astro-rei erguia-se esplendoroso derramando luz e vida por todos os recessos da herdade. Finalmente e à beirinha do termo da estação primaveril, o tão esperado Domingo 18 de Junho de 1939 abria-se e por fortuna pressentia-se soalheiro, bafejado por temperatura amena e isento de nuvens, embora envolvido por brisa acariciadora um tanto incerta e soprada dos quadrantes Norte e Oeste que geravam ondas suaves no extenso oceano dourado em que transformara a esplêndida seara de trigo maduro da Quinta de Montalegre. Bastante cedinho, também o ardina, sempre pontual, já badalara o sino do portão e entregara o jornal como diariamente era uso e costume.
Apesar de outros compromissos inadiáveis o aguardassem (estava à porta a ceifa das searas de trigo e aveia, além da debulha dos cereais, o enfardar do feno, etc.), Augusto Castelhano ainda folheara e passara os olhos pelo Diário de Notícias, o qual e na primeira página expunha os principais factos ocorridos na véspera, tanto a nível geral do país, como no que respeitava ao noticiário da estranja.
Eis os títulos de maior relevo começando pelo já inevitável Bonifácio e que incluía, não só a publicação do cupão nº 5 correspondente à letra O, a última sílaba da palavra BONIFÁCIO, mas também a figura do fenomenal vulto legendado do seguinte modo:
E em letras maiúsculas sobressaia o título do evento que dentro de poucas horas teria lugar na cidade de Lisboa:
Seguia-se o desenvolvimento da importante ocorrência:
“É hoje o grande dia. Faltam poucas horas para os olhos da população de Lisboa se encantarem na contemplação do elegante aparelho que lhe trará pelos ares o incomparável Bonifácio, grande amigo do «Diário de Notícias», espírito folgazão, alma generosa, homem de grandes iniciativas. Como é sabido, Bonifácio já nos tinha enviado três contos que, numa feliz inspiração, mandou distribuir em prémios por meio de prospectos lançados de avião”. “Agora traz no bolso um documento que será trocado no «Diário de Notícias» por boas notas, na importância de 2.000$00 (dois contos), à pessoa que lá o conduzir, depois da sua descida aparatosa em pára-quedas”.
“Segundo informámos, e não foi alterado, o avião de Bonifácio subirá a Avenida da Liberdade, voando baixo e lançando os seus prospectos anunciadores de grandes novidades. Depois tomará altura e escolherá o ponto mais favorável para a descida - que não será no Parque Eduardo VII, devido aos acidentes do terreno”.
“Preparem-se, pois, os nossos leitores e todos os amigos de Bonifácio com os cinco cupões que o nosso jornal publicou e vão esperar o Bonifácio hoje, entre as 18 e as 19 horas”.
E, claro está, não faltavam os oportunos conselhos:
“Recomendamos à pessoa que encontrar Bonifácio o maior cuidado com ele e com o pára-quedas para que cheguem ao “Diário de Notícias” em boas condições e aconselhamos-lhe a tomar um automóvel para o transporte até ao nosso jornal”.
“Para receber o prémio de Esc. 2.000$00 é necessário apresentar a colecção dos 5 cupões que o “Diário de Notícias” publicou.
Outras novidades englobadas no matutino lisboeta com especial incidência visando a partida do Chefe do Estado (Óscar Carmona) na sua visita a África:
“NUMA APOTEOSE DE ENTUSIASMO POPULAR. O CHEFE DO ESTADO PARTIU PARA A SUA VIAGEM A ÁFRICA. MILHARES DE PESSOAS ACLAMARAM O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. UMA PARADA AÉREA E UM CORTEJO FLUVIAL IMPONENTES”
E os elucidativos subtítulos:
“O TERREIRO DO PAÇO EM FESTA”
“No momento de despedir-se, o Chefe do Estado falou ao Diário de Notícias com estas palavras”:
“A minha alma vibra de emoção na hora em que levo o abraço de Portugal aos nossos amigos da União Sul-Africana e aos activos e generosos trabalhadores do Império”.
E o relato do acontecimento prosseguia assim:
“Saudações de muito povo desde o Palácio de Belém até ao Terreiro do Paço onde uma multidão aguardava o Chefe do Estado. Partiu entre palmas e bandeiras desfraldadas ao vento da Nação, Cidade de Lisboa, Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, Grã-Bretanha, União Sul-Africana, entre outras. Guarda de Honra constituída por formações da Marinha e respectiva Banda de Música, Brigada Naval, Legião Portuguesa, Colégio Militar, Pupilos do Exército e Mocidade Portuguesa”.
A despedida do Cardeal Patriarca de Lisboa (Manuel Gonçalves Cerejeira) aquando da partida para a visita a África do Presidente da República, Óscar Carmona
E ainda:
“Salvas dos navios de guerra, barcos embandeirados cruzavam as águas do rio Tejo, aviões tracejando os céus e provenientes das seguintes origens: Aeronáutica Civil (quatro esquadrilhas com quinze aparelhos que levantaram voo de Alverca), delegações do Aero-Clube de Braga com dois aviões, Aero-Clube de Arraiolos, Escola Salazar com três aviões e dois aviões da Escola Manuel Bramão”.
O trimotor Junker JU-52, um dos aviões que participou nas saudações de despedida do Chefe do Estado, Óscar Carmona, na sua viagem a África no dia 17 de Junho de 1939.
“A Aviação Militar fez-se representar por uma patrulha de trimotores da Base da Ota e uma esquadrilha da Base de Sintra. A Aviação Marítima surgiu com duas aeronaves da Base de Aveiro, além de Lisboa que se apresentou apenas com um avião”.
E ainda outra chamada de atenção:
“OS CUMPRIMENTOS DE DESPEDIDA”
“O Governo, Corpo Diplomático, Embaixadores e altas individualidades militares e civis saudaram o Chefe do Estado”
E adiantava logo a seguir:
“Em frente das três tribunas onde tomaram lugar as entidades que oficialmente apresentaram ao Chefe do Estado, Óscar Carmona, os seus cumprimentos de despedida: o Sr. Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira, Dr. Augusto de Castro (Comissário Geral da Exposição do Mundo Português), Ministros do Interior, Marinha, Educação Nacional, Comércio, Colónias, entre muitos outros”.
“DE CASCAIS A LISBOA. O Sr. Presidente da República foi muito aclamado durante o percurso”.
A Mocidade Portuguesa acompanhou o Presidente da República (Óscar Carmona) na sua viagem a África no Navio N/T Colonial
Mas o Diário de Notícias insistia e convidava o leitor para a página 9. Assim:
Relato de três outras ocorrências oriundas do estrangeiro:
“FALTAM VÍVERES em Tien-Tsin. As ruas da concessão britânica, após quatro dias de cerco estão desertas e o comércio encontra-se paralisado”;
“WEIDMANN, um dos maiores criminosos do nosso século foi guilhotinado ontem em Versalhes”;
“O GENERAL MILLAN ASTRAY regressou ontem a Espanha”.
Mas, retomemos o fio da narrativa recheada com os pormenores possíveis e granjeados aqui e ali, a propósito da histórica descida do portentoso Bonifácio, tal como a ouvimos contar e recontar até à exaustão ao longo de várias décadas, tanto por familiares, como por amigos comuns de António Castelhano.
Assim sendo, vamos então regressar ao lar da família Castelhano, precisamente ao dia 18 de Junho de 1939 e onde às primeiras horas da manhã ainda reinava um relativo sossego. Escassa movimentação entre os mais jovens membros do núcleo familiar, os quais demoravam em dar sinais de vida, ora pegados no último sono da madrugada, ora relutantes em saltar do aconchego do “vale de lençóis” aproveitando, como seria de prever, o dia de folga semanal, tanto para aqueles que já trabalhavam (António na arte de alfaiate e Lucialina que encetava as passadas iniciais na profissão de costureira), como as duas irmãs mais novas (Maria Manuela e Maria Helena) que frequentavam a Escola Primária em Carnide, a Escola da Mestra, tal como a população local a designava.
António Castelhano tivera um sono algo agitado e para completar a desdita, levantou-se apoquentado por leve mas arreliadora dor de dentes.
Após despachar o pequeno-almoço, Maria Augusta ainda adiantou os preparativos para a “refeição-maior” estabelecida para cerca das 13.00 horas, tal como sempre fora hábito na casa. Cuidou do mais jovem elemento da família, o pimpolho Carlos Alberto, agora com 13 meses de idade e deixou-o à guarda dos irmãos com a incumbência de deitarem uma olhadela à criancinha sempre que fosse necessário. Então, sim! Ganhou asas e apressou-se.
A oficina de ferrador do Sr. Gonçalves “Ferrador” (Estrada da Luz, 216) que desempenhava a exigente profissão de ferrar gado cavalar e bovino.
Percorreu o curto trajecto até ao portão de acesso à Quinta Montalegre na Estrada da Luz, 203 e situado um pouco antes da “casa do ferrador” (Estrada da Luz, 216), onde o Sr. Gonçalves “Ferrador” pontificava a grande altura no seu exigente mister, isto é, ferrar todas as rezes existentes na enorme área espacial com epicentro em Carnide, sejam equídeos, muares ou bovinos, além da manufactura de todo o género de ferraduras, tanto no tamanho como no feitio e moldadas à medida de cada animal que se apresentasse para calçar utilizando, para tal fim, a forja, o malho e a bigorna e onde, em estilo verdadeiramente invulgar, evidenciava requintada maestria operando maravilhas.
E como nos dava tremendo gosto apreciar o espantoso labor de extrema eficiência e precisão do Sr. Gonçalves “Ferrador”.
Ultrapassada a “casa do ferrador”, Maria Augusta dirigiu-se à Igreja de Nossa Senhora Luz (junto ao Largo da Luz e ao Colégio Militar) onde, como crente indefectível que foi até ao último sopro de vida da Igreja Católica Apostólica e Romana, assistiria à Missa Dominical das 10.00 horas. Quando voltasse a casa por volta das 11.00 horas, muito trabalho teria pela frente… a esperá-la…
Quanto às raparigas, a Lucialina, a Maria Manuela, a Maria Helena e ao irmão António, depois de se aperaltarem também iriam participar no Ofício Divino, porém um pouco mais tarde na chamada “Missa do Dia”, justamente ao badalar das 12.00 horas.
Ora, quando os irmãos regressaram da Igreja de Carnide vinham algo alvoraçados e traziam preciosas novidades que ouviram passar de boca em boca. Alguém que viajara no eléctrico da Carreira 13 da Carris no percurso desde os Restauradores até Carnide divulgara a sensacional notícia que se propagara num ápice pela população de Carnide.
Constava-se que milhares, muitos milhares de pessoas provenientes de todos os cantos da cidade de Lisboa e também dos arredores, municiados de fartos e saborosos farnéis, invadiram a Avenida da Liberdade e abancaram por todo espaço contido entre o Marquês de Pombal e a Praça dos Restauradores e, paulatinamente converteram o local num espectacular arraial, sobressaindo um colossal “comes-e-bebes”, alegria a rodos estampada no rosto da mole humana em delírio e, não faltando sequer, música de acordéon ou gaita-de-beiços, rufar de bombos e tambores, além de cantorias à desgarrada.
Igreja de Nossa Senhora da Luz (Largo da Luz, junto ao Colégio Militar), templo frequentado pela família de Augusto Castelhano.
O entusiasmo das gentes em torno do bendito Bonifácio evoluíra de maneira exponencial e ultrapassara um patamar inaudito. Enfim, a saudável e espantosa confraternização aguardava expectante e a pé firme, a almejada descida do venerável Bonifácio na perspectiva aliciante de arrecadar um bom dinheirinho, sonho acalentado no pensamento de inúmeros cidadãos residentes ou simples visitantes ocasionais ou não da Cidade-Capital do país.
Durante o almoço, António não se livrou de alguns remoques do pai, o qual e face a tanta confusão, largava pragas a torto-e-a-direito, secundado pelas irmãs que também o acicatavam amiúde, insistindo e querendo saber qual seria a sua intenção no que dizia respeito ao Bonifácio, afinal de contas, o premente assunto que absorvia todas as conversas e que despertavam altíssimo interesse, mesmo aos espíritos mais indiferentes.
E a sacramental pergunta continuava sempre a bailar, aferroando o juízo de António: “Então, sempre vais à Avenida da Liberdade deitar a unha ao safado do Bonifácio?”
António, desanimado com a dor de dentes que se aferrara que nem lapa em rocha e não o largava, quase não dava troco às provocações, mas entre dentes já aventava a hipótese de ficar sossegadinho em casa e procurar um qualquer remédio que o aliviasse das dores: “Cá por mim, se calhar vou à farmácia. O Bonifácio que vá dar uma volta ao bilhar grande”. Porém, voltava a repetir: “Ainda se o bom do Bonifácio desse um jeitinho e caísse aqui perto é que era mesmo catita”.
A Farmácia Matos (Rua Neves Costa, 35) localizada no lado esquerdo da artéria (frente à cabina telefónica dos TLP e a meia dúzia de passos do Coreto de Carnide) e onde António Castelhano se deslocou no intuito de adquirir um medicamento que lhe aliviasse a dor de dentes que tanto o apoquentou no dia 18 de Junho de 1939.
Entretanto, o início da tarde surgira demasiadamente encalorada e à medida que o momento previsto do lançamento do insigne Bonifácio sobre a cidade Lisboa se aproximava do ponto culminante, o vento mudou de tom e cresceu de intensidade. Agora, açoitadas por vento rijo, as espigas de trigo ressentiam-se, vergavam perigosamente à beirinha de quebrar pelo caule.
O Coreto de Carnide na Rua Neves Costa localizado no popularmente chamado Largo do Coreto, outrora conhecido como “O Alto do Poço”.
Coincidência ou não, a dor de dentes que afligia António desde que acordara, também se agravara substancialmente e torna-se deveras insuportável. Perante tão imprevisível situação, o jovem António será confrontado com um verdadeiro dilema a que não conseguiu escapar: aplacar a dor de dentes ou Avenida da Liberdade à caça do Bonifácio. Enfim, talvez a custo, acabou por optar. Definitivamente desiste e já não se deslocaria à Avenida da Liberdade. Prefere dar um salto à farmácia e desencantar qualquer medicamento que lhe arranque as dores de vez, dores atrozes que tanto o atormentavam.
A Rua Neves Costa e vendedeiras de fruta nas escadinhas de acesso ao Largo do Coreto, outrora Alto do Poço.
António deitou os pés ao caminho pela Estrada da Luz e dirigiu-se à Farmácia Matos (Rua Neves Costa, 35) localizada logo a seguir onde os “carros eléctricos davam a volta”, isto é, a meia-dúzia de passos do Coreto de Carnide e mesmo em frente à cabina telefónica dos TLP, precisamente num sítio histórico carregadinho de memórias desde tempos muito antigos e denominado “O Alto do Poço”.
O Alto do Poço e os festejos na noite de Santo António citados nas Notícias de Carnide e extraídas do livro “Pelos subúrbios e vizinhanças de Lisboa” (pág. 88) de Gabriel Pereira e que, felizmente ainda hoje se mantêm.
Actualmente, o pitoresco local é popularmente conhecido como o Largo do Coreto que também acolhe no seu regaço uma velhinha instituição da freguesia de Carnide fundada oficialmente a 11 de Novembro de 1920 e merecedora de rasgados encómios: o Carnide Clube, agremiação dedicada ao desporto (Basquetebol, Futsal e Artes Marciais), além de participar activamente no desenvolvimento sócio-cultural da população local através de diversas iniciativas, tais como, os Arraiais Populares de Carnide.
Largo da Praça, a afunilada Rua da Fonte e o carro eléctrico da Carreira 13 da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, Restauradores/Carnide.
Mas, azar dos azares, António Castelhano vai bater em cheio com o nariz na porta, pois a botica encerrara devido a não se encontrar “de serviço”, exactamente naquele dia da semana.
Enfim, tudo contribuía a “dar p’ró torto” e António ao sentir-se já descorçoado com tamanha desdita não hesitou. Deu meia volta e pelas 18.00 horas preparou-se em retornar a casa, agora sob calor intenso: Largo da Praça, a afunilada Rua da Fonte, Largo das Pimenteiras onde matou a sede ingerindo fartas goladas d’água no chafariz. Ainda hesitou em seguir pela Azinhaga da Fonte, mas preferiu seguir em frente pelo Largo da Luz.
À mão esquerda, lá estava o austero templo dedicado a Nossa Senhora da Luz e do lado direito, virada ao Jardim da Luz, a fachada principal do imponente edifício do Colégio Militar. Um pouquito à frente e com a fachada virada a Sul em pleno largo da Luz, o bela estrutura do Convento dos Franciscanos construído em 1878 sob a traça do arquitecto Norberto Correia.
O calor apertava bastante e curiosamente, o vento também resolveu endoidar e desatou a soprar com inaudita ferocidade tornando-se quase um vendaval desfeito. Momentos antes e apesar da barulheira provocada pela violência da ventania, António tivera a percepção de ouvir o ruído ritmado de um qualquer motor, mas agora, esse som imperceptível evidenciava-se muito mais nítido parecendo-lhe que se acercava encurtando distâncias. António estacou imediatamente, apurou os ouvidos e ao levantar a cabeça, avistou uma pequena aeronave que evoluía vagarosamente nos céus descrevendo várias manobras sobrevoando o local onde se encontrava, precisamente o Largo da Luz.
Balançando as asas ao sabor das rajadas de vento fortíssimo e após descrever larga trajectória sobre o território de Carnide, a avioneta afastou-se p’ra longe. Porém, passados curtos minutos, o avião que se assemelhava incrivelmente com a avioneta que durante toda a semana propagandeara a chegada do Bonifácio a Lisboa, regressava na mesma direcção do Largo da Luz. António, acometido de súbita e brutal emoção, estremeceu da cabeça aos pés e um fantástico presságio chispou-lhe os pensamentos.
Convento dos Franciscanos (anos 60 do século XX) no Largo da Luz (Carnide) edificado em 1878 sob a traça do arquitecto Norberto Correia.
Engasgou-se com um grito que lhe brotara pelas goelas fora: “É o avião do Bonifácio, tal qual. Que Diabo se estará a passar”.
E lembrou-se que o momento exacto da descida do estuporado Bonifácio sobre a cidade de Lisboa se esgotava a passos largos… e um nervoso miudinho apoderou-se de todo o seu ser. Pró que desse e viesse, grudou os olhos no avião e quedou-se mais alertado que nunca…
Até que, algo que não constava no guião do filme que fora tão minuciosamente elaborado nos mínimos detalhes, iria acontecer…
[Continua...]
***** O autor rejeita as normas do Novo Acordo Ortográfico.
Daí a breves instantes, os dois leiteiros que possuíam contractos de fornecimento de leite chegariam com as suas carroças de tracção muar a fim de recolher e posteriormente distribuir pelas clientelas, porta-a-porta, o suco leitoso de óptima qualidade da Quinta de Montalegre.
Seguia-se a alimentação do gado (feno ou erva consoante a estação do ano, suplemento alimentar baseada em misturas de sêmeas e farinhas de alfarroba ou outras, água), limpeza de manjedouras e coxias, substituição de palha seca das camas, etc.
A foto do Bonifácio e a legenda: “Bonifácio aviador, tal como se lançará em pára-quedas sobre Lisboa” (recorte do Diário de Notícias de 18 de Junho de 1939)
Ora, quando Augusto Castelhano se aprontou para tragar o frugal pequeno-almoço na sua residência localizado a pouco mais de meia centena de passos dos estábulos, já Maria Augusta se encontrava na cozinha assoberbada na intensa labuta doméstica, mas aguardando a chegada do marido Augusto que, tal como era hábito, lhe passava p’rá mão a pequena vasilha de alumínio, “a leiteira”, a transbordar de leite morno acabadinho de mungir da “teta da vaca”, elemento de valor nutritivo essencial na preparação da primeira refeição do dia.
Poucos momentos passados e já com a passarada a chilrear por todo o lado, o astro-rei erguia-se esplendoroso derramando luz e vida por todos os recessos da herdade. Finalmente e à beirinha do termo da estação primaveril, o tão esperado Domingo 18 de Junho de 1939 abria-se e por fortuna pressentia-se soalheiro, bafejado por temperatura amena e isento de nuvens, embora envolvido por brisa acariciadora um tanto incerta e soprada dos quadrantes Norte e Oeste que geravam ondas suaves no extenso oceano dourado em que transformara a esplêndida seara de trigo maduro da Quinta de Montalegre. Bastante cedinho, também o ardina, sempre pontual, já badalara o sino do portão e entregara o jornal como diariamente era uso e costume.
Apesar de outros compromissos inadiáveis o aguardassem (estava à porta a ceifa das searas de trigo e aveia, além da debulha dos cereais, o enfardar do feno, etc.), Augusto Castelhano ainda folheara e passara os olhos pelo Diário de Notícias, o qual e na primeira página expunha os principais factos ocorridos na véspera, tanto a nível geral do país, como no que respeitava ao noticiário da estranja.
Recorte do Diário de Notícias anunciando a descida do Bonifácio sobre a cidade de Lisboa
(in Diário de Notícias de 18 de Junho de 1939)
“Bonifácio aviador, tal qual como se lançará em paraquedas sobre Lisboa”.
E em letras maiúsculas sobressaia o título do evento que dentro de poucas horas teria lugar na cidade de Lisboa:
“SOBRE LISBOA, EM PÁRA-QUEDAS”
“BONIFÁCIO DESCERÁ ESTA TARDE, DAS 18 PARA AS 19 HORAS”
“UM PRÉMIO DE ESC. 2.000$00
A quem o encontrar e o conduzir ao Diário de Notícias”
“De bordo do seu avião, Bonifácio lançará, sobre a Avenida da Liberdade, milhares de prospectos com várias notícias de sensação”.
Seguia-se o desenvolvimento da importante ocorrência:
“É hoje o grande dia. Faltam poucas horas para os olhos da população de Lisboa se encantarem na contemplação do elegante aparelho que lhe trará pelos ares o incomparável Bonifácio, grande amigo do «Diário de Notícias», espírito folgazão, alma generosa, homem de grandes iniciativas. Como é sabido, Bonifácio já nos tinha enviado três contos que, numa feliz inspiração, mandou distribuir em prémios por meio de prospectos lançados de avião”. “Agora traz no bolso um documento que será trocado no «Diário de Notícias» por boas notas, na importância de 2.000$00 (dois contos), à pessoa que lá o conduzir, depois da sua descida aparatosa em pára-quedas”.
“Segundo informámos, e não foi alterado, o avião de Bonifácio subirá a Avenida da Liberdade, voando baixo e lançando os seus prospectos anunciadores de grandes novidades. Depois tomará altura e escolherá o ponto mais favorável para a descida - que não será no Parque Eduardo VII, devido aos acidentes do terreno”.
“Preparem-se, pois, os nossos leitores e todos os amigos de Bonifácio com os cinco cupões que o nosso jornal publicou e vão esperar o Bonifácio hoje, entre as 18 e as 19 horas”.
O cupão nº 5 (e último) e que correspondia à sílaba final da palavra BONIFÁCIO
(in Diário de Notícia de 18 de Junho de 1939)
E, claro está, não faltavam os oportunos conselhos:
“Recomendamos à pessoa que encontrar Bonifácio o maior cuidado com ele e com o pára-quedas para que cheguem ao “Diário de Notícias” em boas condições e aconselhamos-lhe a tomar um automóvel para o transporte até ao nosso jornal”.
“Para receber o prémio de Esc. 2.000$00 é necessário apresentar a colecção dos 5 cupões que o “Diário de Notícias” publicou.
**********
Outras novidades englobadas no matutino lisboeta com especial incidência visando a partida do Chefe do Estado (Óscar Carmona) na sua visita a África:
“NUMA APOTEOSE DE ENTUSIASMO POPULAR. O CHEFE DO ESTADO PARTIU PARA A SUA VIAGEM A ÁFRICA. MILHARES DE PESSOAS ACLAMARAM O PRESIDENTE DA REPÚBLICA. UMA PARADA AÉREA E UM CORTEJO FLUVIAL IMPONENTES”
As legendas das fotos: “A multidão assiste à partida na Praça do Comércio” e “O abraço de despedida”
(in Diário de Notícias de 18/6/1939)
E os elucidativos subtítulos:
“O TERREIRO DO PAÇO EM FESTA”
“No momento de despedir-se, o Chefe do Estado falou ao Diário de Notícias com estas palavras”:
“A minha alma vibra de emoção na hora em que levo o abraço de Portugal aos nossos amigos da União Sul-Africana e aos activos e generosos trabalhadores do Império”.
E o relato do acontecimento prosseguia assim:
“Saudações de muito povo desde o Palácio de Belém até ao Terreiro do Paço onde uma multidão aguardava o Chefe do Estado. Partiu entre palmas e bandeiras desfraldadas ao vento da Nação, Cidade de Lisboa, Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, Grã-Bretanha, União Sul-Africana, entre outras. Guarda de Honra constituída por formações da Marinha e respectiva Banda de Música, Brigada Naval, Legião Portuguesa, Colégio Militar, Pupilos do Exército e Mocidade Portuguesa”.
A despedida do Cardeal Patriarca de Lisboa (Manuel Gonçalves Cerejeira) aquando da partida para a visita a África do Presidente da República, Óscar Carmona
(in Diário de Notícias de 18/6/1939)
E ainda:
“Salvas dos navios de guerra, barcos embandeirados cruzavam as águas do rio Tejo, aviões tracejando os céus e provenientes das seguintes origens: Aeronáutica Civil (quatro esquadrilhas com quinze aparelhos que levantaram voo de Alverca), delegações do Aero-Clube de Braga com dois aviões, Aero-Clube de Arraiolos, Escola Salazar com três aviões e dois aviões da Escola Manuel Bramão”.
O trimotor Junker JU-52, um dos aviões que participou nas saudações de despedida do Chefe do Estado, Óscar Carmona, na sua viagem a África no dia 17 de Junho de 1939.
(Foto Wikipédia)
“A Aviação Militar fez-se representar por uma patrulha de trimotores da Base da Ota e uma esquadrilha da Base de Sintra. A Aviação Marítima surgiu com duas aeronaves da Base de Aveiro, além de Lisboa que se apresentou apenas com um avião”.
E ainda outra chamada de atenção:
“OS CUMPRIMENTOS DE DESPEDIDA”
“O Governo, Corpo Diplomático, Embaixadores e altas individualidades militares e civis saudaram o Chefe do Estado”
E adiantava logo a seguir:
“Em frente das três tribunas onde tomaram lugar as entidades que oficialmente apresentaram ao Chefe do Estado, Óscar Carmona, os seus cumprimentos de despedida: o Sr. Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira, Dr. Augusto de Castro (Comissário Geral da Exposição do Mundo Português), Ministros do Interior, Marinha, Educação Nacional, Comércio, Colónias, entre muitos outros”.
“DE CASCAIS A LISBOA. O Sr. Presidente da República foi muito aclamado durante o percurso”.
A Mocidade Portuguesa acompanhou o Presidente da República (Óscar Carmona) na sua viagem a África no Navio N/T Colonial
(in Revista da Mocidade Portuguesa, 1939)
Mas o Diário de Notícias insistia e convidava o leitor para a página 9. Assim:
“REPORTAGEM GRÁFICA DA VIAGEM PRESIDENCIAL”.
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Relato de três outras ocorrências oriundas do estrangeiro:
“FALTAM VÍVERES em Tien-Tsin. As ruas da concessão britânica, após quatro dias de cerco estão desertas e o comércio encontra-se paralisado”;
“WEIDMANN, um dos maiores criminosos do nosso século foi guilhotinado ontem em Versalhes”;
“O GENERAL MILLAN ASTRAY regressou ontem a Espanha”.
**********
Mas, retomemos o fio da narrativa recheada com os pormenores possíveis e granjeados aqui e ali, a propósito da histórica descida do portentoso Bonifácio, tal como a ouvimos contar e recontar até à exaustão ao longo de várias décadas, tanto por familiares, como por amigos comuns de António Castelhano.
Assim sendo, vamos então regressar ao lar da família Castelhano, precisamente ao dia 18 de Junho de 1939 e onde às primeiras horas da manhã ainda reinava um relativo sossego. Escassa movimentação entre os mais jovens membros do núcleo familiar, os quais demoravam em dar sinais de vida, ora pegados no último sono da madrugada, ora relutantes em saltar do aconchego do “vale de lençóis” aproveitando, como seria de prever, o dia de folga semanal, tanto para aqueles que já trabalhavam (António na arte de alfaiate e Lucialina que encetava as passadas iniciais na profissão de costureira), como as duas irmãs mais novas (Maria Manuela e Maria Helena) que frequentavam a Escola Primária em Carnide, a Escola da Mestra, tal como a população local a designava.
António Castelhano tivera um sono algo agitado e para completar a desdita, levantou-se apoquentado por leve mas arreliadora dor de dentes.
Após despachar o pequeno-almoço, Maria Augusta ainda adiantou os preparativos para a “refeição-maior” estabelecida para cerca das 13.00 horas, tal como sempre fora hábito na casa. Cuidou do mais jovem elemento da família, o pimpolho Carlos Alberto, agora com 13 meses de idade e deixou-o à guarda dos irmãos com a incumbência de deitarem uma olhadela à criancinha sempre que fosse necessário. Então, sim! Ganhou asas e apressou-se.
A oficina de ferrador do Sr. Gonçalves “Ferrador” (Estrada da Luz, 216) que desempenhava a exigente profissão de ferrar gado cavalar e bovino.
(Foto de Artur Goulart, 1961 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Percorreu o curto trajecto até ao portão de acesso à Quinta Montalegre na Estrada da Luz, 203 e situado um pouco antes da “casa do ferrador” (Estrada da Luz, 216), onde o Sr. Gonçalves “Ferrador” pontificava a grande altura no seu exigente mister, isto é, ferrar todas as rezes existentes na enorme área espacial com epicentro em Carnide, sejam equídeos, muares ou bovinos, além da manufactura de todo o género de ferraduras, tanto no tamanho como no feitio e moldadas à medida de cada animal que se apresentasse para calçar utilizando, para tal fim, a forja, o malho e a bigorna e onde, em estilo verdadeiramente invulgar, evidenciava requintada maestria operando maravilhas.
E como nos dava tremendo gosto apreciar o espantoso labor de extrema eficiência e precisão do Sr. Gonçalves “Ferrador”.
Ultrapassada a “casa do ferrador”, Maria Augusta dirigiu-se à Igreja de Nossa Senhora Luz (junto ao Largo da Luz e ao Colégio Militar) onde, como crente indefectível que foi até ao último sopro de vida da Igreja Católica Apostólica e Romana, assistiria à Missa Dominical das 10.00 horas. Quando voltasse a casa por volta das 11.00 horas, muito trabalho teria pela frente… a esperá-la…
Quanto às raparigas, a Lucialina, a Maria Manuela, a Maria Helena e ao irmão António, depois de se aperaltarem também iriam participar no Ofício Divino, porém um pouco mais tarde na chamada “Missa do Dia”, justamente ao badalar das 12.00 horas.
Ora, quando os irmãos regressaram da Igreja de Carnide vinham algo alvoraçados e traziam preciosas novidades que ouviram passar de boca em boca. Alguém que viajara no eléctrico da Carreira 13 da Carris no percurso desde os Restauradores até Carnide divulgara a sensacional notícia que se propagara num ápice pela população de Carnide.
Constava-se que milhares, muitos milhares de pessoas provenientes de todos os cantos da cidade de Lisboa e também dos arredores, municiados de fartos e saborosos farnéis, invadiram a Avenida da Liberdade e abancaram por todo espaço contido entre o Marquês de Pombal e a Praça dos Restauradores e, paulatinamente converteram o local num espectacular arraial, sobressaindo um colossal “comes-e-bebes”, alegria a rodos estampada no rosto da mole humana em delírio e, não faltando sequer, música de acordéon ou gaita-de-beiços, rufar de bombos e tambores, além de cantorias à desgarrada.
Igreja de Nossa Senhora da Luz (Largo da Luz, junto ao Colégio Militar), templo frequentado pela família de Augusto Castelhano.
(Foto dos Estúdios de Mário Novais, 1947 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
O entusiasmo das gentes em torno do bendito Bonifácio evoluíra de maneira exponencial e ultrapassara um patamar inaudito. Enfim, a saudável e espantosa confraternização aguardava expectante e a pé firme, a almejada descida do venerável Bonifácio na perspectiva aliciante de arrecadar um bom dinheirinho, sonho acalentado no pensamento de inúmeros cidadãos residentes ou simples visitantes ocasionais ou não da Cidade-Capital do país.
Avenida da Liberdade em 1940 e, à esquerda, o edifício do Diário de Notícias.
(Foto dos Estúdios de Mário Novais, Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Durante o almoço, António não se livrou de alguns remoques do pai, o qual e face a tanta confusão, largava pragas a torto-e-a-direito, secundado pelas irmãs que também o acicatavam amiúde, insistindo e querendo saber qual seria a sua intenção no que dizia respeito ao Bonifácio, afinal de contas, o premente assunto que absorvia todas as conversas e que despertavam altíssimo interesse, mesmo aos espíritos mais indiferentes.
E a sacramental pergunta continuava sempre a bailar, aferroando o juízo de António: “Então, sempre vais à Avenida da Liberdade deitar a unha ao safado do Bonifácio?”
António, desanimado com a dor de dentes que se aferrara que nem lapa em rocha e não o largava, quase não dava troco às provocações, mas entre dentes já aventava a hipótese de ficar sossegadinho em casa e procurar um qualquer remédio que o aliviasse das dores: “Cá por mim, se calhar vou à farmácia. O Bonifácio que vá dar uma volta ao bilhar grande”. Porém, voltava a repetir: “Ainda se o bom do Bonifácio desse um jeitinho e caísse aqui perto é que era mesmo catita”.
A Farmácia Matos (Rua Neves Costa, 35) localizada no lado esquerdo da artéria (frente à cabina telefónica dos TLP e a meia dúzia de passos do Coreto de Carnide) e onde António Castelhano se deslocou no intuito de adquirir um medicamento que lhe aliviasse a dor de dentes que tanto o apoquentou no dia 18 de Junho de 1939.
(Foto de Armando Serôdio, 1967 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Entretanto, o início da tarde surgira demasiadamente encalorada e à medida que o momento previsto do lançamento do insigne Bonifácio sobre a cidade Lisboa se aproximava do ponto culminante, o vento mudou de tom e cresceu de intensidade. Agora, açoitadas por vento rijo, as espigas de trigo ressentiam-se, vergavam perigosamente à beirinha de quebrar pelo caule.
O Coreto de Carnide na Rua Neves Costa localizado no popularmente chamado Largo do Coreto, outrora conhecido como “O Alto do Poço”.
(Foto de Arnaldo Madureira, 1961 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Coincidência ou não, a dor de dentes que afligia António desde que acordara, também se agravara substancialmente e torna-se deveras insuportável. Perante tão imprevisível situação, o jovem António será confrontado com um verdadeiro dilema a que não conseguiu escapar: aplacar a dor de dentes ou Avenida da Liberdade à caça do Bonifácio. Enfim, talvez a custo, acabou por optar. Definitivamente desiste e já não se deslocaria à Avenida da Liberdade. Prefere dar um salto à farmácia e desencantar qualquer medicamento que lhe arranque as dores de vez, dores atrozes que tanto o atormentavam.
A Rua Neves Costa e vendedeiras de fruta nas escadinhas de acesso ao Largo do Coreto, outrora Alto do Poço.
(Foto de Fernando Martinez Pozal, 1950 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
António deitou os pés ao caminho pela Estrada da Luz e dirigiu-se à Farmácia Matos (Rua Neves Costa, 35) localizada logo a seguir onde os “carros eléctricos davam a volta”, isto é, a meia-dúzia de passos do Coreto de Carnide e mesmo em frente à cabina telefónica dos TLP, precisamente num sítio histórico carregadinho de memórias desde tempos muito antigos e denominado “O Alto do Poço”.
O Alto do Poço e os festejos na noite de Santo António citados nas Notícias de Carnide e extraídas do livro “Pelos subúrbios e vizinhanças de Lisboa” (pág. 88) de Gabriel Pereira e que, felizmente ainda hoje se mantêm.
(Extracto do livro “Pelos subúrbios e vizinhanças de Lisboa”)
Actualmente, o pitoresco local é popularmente conhecido como o Largo do Coreto que também acolhe no seu regaço uma velhinha instituição da freguesia de Carnide fundada oficialmente a 11 de Novembro de 1920 e merecedora de rasgados encómios: o Carnide Clube, agremiação dedicada ao desporto (Basquetebol, Futsal e Artes Marciais), além de participar activamente no desenvolvimento sócio-cultural da população local através de diversas iniciativas, tais como, os Arraiais Populares de Carnide.
Largo da Praça, a afunilada Rua da Fonte e o carro eléctrico da Carreira 13 da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, Restauradores/Carnide.
(Foto Wikipédia, 1960)
Mas, azar dos azares, António Castelhano vai bater em cheio com o nariz na porta, pois a botica encerrara devido a não se encontrar “de serviço”, exactamente naquele dia da semana.
Enfim, tudo contribuía a “dar p’ró torto” e António ao sentir-se já descorçoado com tamanha desdita não hesitou. Deu meia volta e pelas 18.00 horas preparou-se em retornar a casa, agora sob calor intenso: Largo da Praça, a afunilada Rua da Fonte, Largo das Pimenteiras onde matou a sede ingerindo fartas goladas d’água no chafariz. Ainda hesitou em seguir pela Azinhaga da Fonte, mas preferiu seguir em frente pelo Largo da Luz.
Largo das Pimenteiras e chafariz.
(Foto de Fernando Dominguez Pozal, 1953 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
(Foto de Fernando Dominguez Pozal, 1953 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
À mão esquerda, lá estava o austero templo dedicado a Nossa Senhora da Luz e do lado direito, virada ao Jardim da Luz, a fachada principal do imponente edifício do Colégio Militar. Um pouquito à frente e com a fachada virada a Sul em pleno largo da Luz, o bela estrutura do Convento dos Franciscanos construído em 1878 sob a traça do arquitecto Norberto Correia.
O calor apertava bastante e curiosamente, o vento também resolveu endoidar e desatou a soprar com inaudita ferocidade tornando-se quase um vendaval desfeito. Momentos antes e apesar da barulheira provocada pela violência da ventania, António tivera a percepção de ouvir o ruído ritmado de um qualquer motor, mas agora, esse som imperceptível evidenciava-se muito mais nítido parecendo-lhe que se acercava encurtando distâncias. António estacou imediatamente, apurou os ouvidos e ao levantar a cabeça, avistou uma pequena aeronave que evoluía vagarosamente nos céus descrevendo várias manobras sobrevoando o local onde se encontrava, precisamente o Largo da Luz.
Fachada principal do Colégio Militar no Largo da Luz.
(Foto de Arnaldo Madureira, 1961 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Balançando as asas ao sabor das rajadas de vento fortíssimo e após descrever larga trajectória sobre o território de Carnide, a avioneta afastou-se p’ra longe. Porém, passados curtos minutos, o avião que se assemelhava incrivelmente com a avioneta que durante toda a semana propagandeara a chegada do Bonifácio a Lisboa, regressava na mesma direcção do Largo da Luz. António, acometido de súbita e brutal emoção, estremeceu da cabeça aos pés e um fantástico presságio chispou-lhe os pensamentos.
Convento dos Franciscanos (anos 60 do século XX) no Largo da Luz (Carnide) edificado em 1878 sob a traça do arquitecto Norberto Correia.
(Foto Wikipédia)
Engasgou-se com um grito que lhe brotara pelas goelas fora: “É o avião do Bonifácio, tal qual. Que Diabo se estará a passar”.
E lembrou-se que o momento exacto da descida do estuporado Bonifácio sobre a cidade de Lisboa se esgotava a passos largos… e um nervoso miudinho apoderou-se de todo o seu ser. Pró que desse e viesse, grudou os olhos no avião e quedou-se mais alertado que nunca…
Até que, algo que não constava no guião do filme que fora tão minuciosamente elaborado nos mínimos detalhes, iria acontecer…
[Continua...]
***** O autor rejeita as normas do Novo Acordo Ortográfico.
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