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Capítulo VII - Da prosperidade em tempo de guerra ao declínio e extinção da Quinta de Montalegre
(por Fausto Castelhano)
(por Fausto Castelhano)
A época de maiores sucessos alcançados na Quinta de Montalegre e onde Augusto Castelhano recolheu apreciáveis proventos da exploração agrícola que administrou até ao termo do mês de Novembro de 1944 correspondeu ao período em que os países de todo o mundo se envolveram na medonha hecatombe causada pelo conflito armado da 2ª Guerra Mundial. As inequívocas potencialidades da herdade confirmavam-se em toda a linha: o número de cabeças de gado leiteiro aumentou de modo expressivo e por portanto, a obtenção de uma mais elevada capacidade de leite disponível; o olival continuou a produzir significativo volume de azeite de qualidade ímpar; os lucros auferidos na transacção de argila extraída “barreira” e fornecidos, tanto à Cerâmica de Carnide como à Cerâmica Sanchez, subiram de modo substancial.
A horta da Quinta de Montalegre na Primavera de 1940. Os hortelões António Ferreira Salvador (“António Russo”), Gonçalo e Godinho, o vaqueiro Manuel Rodrigues (Ti’Conde), o “tio Augusto” (casado com Olívia Marques, irmã de Maria Augusta, a 2ª esposa de Augusto Castelhano) com o sobrinho Carlos Alberto ao colo, o primogénito do casal Augusto Castelhano e Maria Augusta Marques.
Os excelentes produtos hortícolas recolhidos nos generosos solos da horta, beneficiados, tanto pela abundância de água do poço, como pela adição no tempo próprio de adubo natural (matéria orgânica das rezes) e trabalhada habilmente por hortelões talentosos, tinham escoamento rápido e garantido, quer na venda directa à população das proximidades da herdade, quer no abastecimento diário aos mercados públicos da cidade de Lisboa. Os cereais, principalmente trigo, vão atingir valores altíssimos em tempo de guerra e agora, adquiridos directamente pelo Estado no intuito declarado de evitar especulações face à extrema penúria da maioria da população e onde fora decretado o “Racionamento” de géneros alimentícios básicos (incluindo o pão), combustíveis, etc. e que se prolongaria até muito depois do termo da 2ª Guerra Mundial, mas afectando, sobretudo as camadas populacionais mais humildes. Entretanto, outros acontecimentos de relevo foram sucedendo na Quinta de Montalegre. Assim, a 11 de Maio de 1940, a família de Augusto Castelhano e Maria Augusta Marques alargou-se com o nascimento do segundo filho, Fausto Augusto. Porém, fosse por imperdoável desleixo, fosse devido a qualquer outra causa nunca devidamente esclarecida, embora o nascimento tenha ocorrido na cidade de Lisboa (Quinta de Montalegre, Freguesia de Benfica), o registo da criança somente seria concretizado oficialmente na freguesia de Salreu (Concelho de Estarreja, distrito de Aveiro) no dia 11 de Agosto de 1941, tal como consta do seu Bilhete de Identidade. Tinham decorrido dezoito meses desde a irregularidade então cometida e que jamais seria rectificada, todavia o prior da Igreja Matriz de S. Martinho de Salreu, pároco José Leitão e que no dia 24 de Agosto de 1941 presidiu ao baptismo dum rapazinho já crescidote, não deixou passar às claras a flagrante incorrecção e, sem a mais leve hesitação, elaborou um documento autenticado com o Selo Branco da Paróquia de S. Martinho de Salreu, Estarreja, Diocese de Aveiro onde fez questão de assentar, não só o local onde efectivamente ocorrera o nascimento da criança (Freguesia de Benfica, Concelho de Lisboa), como também a data correcta (11 de Maio de 1940) onde tal ocorrência tivera lugar acautelando-se, de maneira assaz expedita, posteriores transtornos que lhe fossem assacados. Apresentaram-se à cerimónia como padrinhos de baptismo, a irmã Lucialina e o primo Fausto, filho de Maria Marques, uma das irmãs de Maria Augusta Marques, a esposa de Augusto Castelhano.
Os manos Carlos Alberto (ao volante) e Fausto Augusto no automóvel azul (a pedais) em 1941 na Quinta de Montalegre junto ao portão da Rua dos Soeiros, 193.
Quanto a António Castelhano tornara-se, de um dia para o outro, autêntico herói popular e apontado como ídolo aos olhos dos seus familiares, amigos ou simples conhecidos, quer zona do seu local de trabalho (Rua Tomás Ribeiro, 17 em Lisboa, quer nas proximidades onde residia ou se deslocava, nomeadamente nas freguesias de Benfica e Carnide. Pois bem, ao derredor da brilhante proeza de António Castelhano gerou-se um vagalhão de indiscutível admiração e a fama conquistada “a pulso” na histórica tarde do dia 18 de Junho de 1939 aquando da “captura” do Bonifácio na Quinta de Montalegre repercutiu-se ao longo de décadas, mesmo depois do seu desaparecimento físico. Ao mesmo tempo, a sua identidade também se vai desvanecendo pouco a pouco e, por fim, desaparece sem deixar qualquer rasto quando amigos ou simples anónimos começaram a mencionar António d’Almeida Castelhano como António “Bonifácio” ou apenas pelo breve e carinhoso apodo de “Bonifácio”. E será assim que ficará crismado p’ra sempre, tal como se viria a constatar após volvidas várias décadas. O dia 28 de Dezembro de 1941 será assinalado por um afortunado evento na sequência de frutuoso idílio entre António Castelhano e Maria Fernanda. O Destino teve artes de aproximar os dois jovens quando António optou pela profissão de alfaiate e se empregou como aprendiz (posteriormente, Ajudante e mais tarde, promovido a Mestre) na Alfaiataria Alberto Borges dando ensejo aos primeiros olhares de mútua simpatia com Maria Fernanda, vizinha e estudante na Escola Industrial de Fonseca Benevides e moradora Rua Tomás Ribeiro, 19 (Vila Pinto, nº2 Rés/Chão, D.to), ou seja, “porta com porta” com estabelecimento onde António Castelhano passara a laborar diariamente.
O Bilhete de Identidade do Ano Lectivo de 1934/1935 de Maria Fernanda de Oliveira Vilanova quando frequentava a Escola Industrial de Fonseca Benevides e conheceu António Castelhano.
Enfim, apaixonaram-se por fortes laços de afeição e após prolongado e feliz namoro, António d’Almeida Castelhano de 21 anos, agora um conceituado “mestre alfaiate” reconhecido no seio da respectiva classe profissional, e Maria Fernanda de Oliveira Vilanova de 19 anos de idade e natural da Freguesia de S. Sebastião da Pedreira (Lisboa) onde nascera a 29 de Maio de 1922, entenderam que chegara a hora de “juntar os trapinhos” e passar ao patamar seguinte: o matrimónio.
O casamento de António d’Almeida Castelhano e Maria Fernanda de Oliveira Vilanova realizado na Igreja de Santo Condestável (Lisboa) no dia 28 de Dezembro de 1941.
O acto nupcial efectuou-se na Igreja de Santo Condestável (Lisboa) e a bênção do Sacramento do Matrimónio foi dada pelo pároco Francisco Maria da Silva. O noivo foi apadrinhado por Joaquim da Silva Marques e Zulmira de Oliveira Marques e, pela noiva, apresentaram-se Alberto Ferreira Borges e Maria Amélia Ferreira. O requintado “Copo de Água” foi servido na prestigiada Doçaria “A Portugália”, Avenida Fontes Pereira de Melo, 11 em Lisboa.
António Castelhano em 1942 em pleno milheiral que rodeava a moradia onde residia (após o seu casamento com Maria Fernanda de Oliveira Vilanova) junto ao portão de acesso da Quinta de Montalegre na Azinhaga da Fonte, 22. Repare-se nas tiras de papel de protecção coladas nos vidros das janelas em caso de eventual bombardeamento na 2ª Guerra Mundial.
Casadinhos de fresco e depois de concretizado o contrato de arrendamento com a proprietária (D. Leonor Anjos), os noivos fixariam a sua residência numa pequena moradia integrada na Quinta de Montalegre e situada junto a um dos portões de acesso da herdade, sito na Azinhaga da Fonte, 22.
Maria Teresa Vilanova Castelhano fotografada aos 8 meses de idade (Janeiro de 1944), a filha primogénita de António d’Almeida Castelhano e de Maria Fernanda de Oliveira Vilanova.
Do enlace matrimonial de António Castelhano e Maria Fernanda vão resultar duas filhas: Maria Teresa, cujo nascimento ocorre no dia 22 de Maio de 1943 e Maria Adelaide, (Lálá) que vem ao mundo a 18 de Setembro de 1945, mas infelizmente e depois de ter contraído tuberculose pulmonar, viria a falecer a 24 de Fevereiro de 1949.
O ribombar de cinco morteiros lançados aos céus por Augusto Castelhano (exímio nesta delicada quanto perigosa função) na manhãzinha do dia 18 de Junho de 1944 e que pelo calendário também “calharia” a um Domingo, deu início aos festejos do 5º aniversário da aterragem do Bonifácio na seara de trigo da Quinta de Montalegre e da sua captura pelo azougado António Castelhano. Tendo como cenário natural as sombras acolhedoras do arvoredo que enquadrava a encantadora Cascata Monumental, as animadas e concorridas festividades desenrolaram-se num ambiente de estupenda confraternização onde prevaleceu a boa disposição e amizade sincera entre os participantes que congregaram familiares, amigos e vizinhos da família Castelhano. Dando largas a incontida alegria, os folgazões divertiram-se em alta escala, petiscaram à larga e refrescaram as goelas de cerveja e vinhos de boa cepa, chalacearam quanto puderam, cantaram até enrouquecerem e dançaram até fartar relembrando Bonifácio e o audaz António Castelhano que num momento de afoiteza e inspiração caçou o célebre “boneco aviador” lançado em paraquedas sobre a região de Carnide.
Aproveitando a efeméride, foi também a oportunidade de Maria Teresa, a filha do casal António e Maria Fernanda e presente entre os entusiásticos convidados, estrear o vestido branco concebido e executado pelas mãos talentosas do próprio pai com o tecido do pára-quedas com que Bonifácio fora lançado nos céus da cidade de Lisboa cinco anos antes, prenda suplementar ofertada a António Castelhano pelo Conselho de Administração do Diário de Notícias e de outras entidades promotoras do evento e que se dignaram assistir ao acto solene da entrega do prémio pecuniário pela captura do Bonifácio. Tempos de mudança Em Setembro de 1944 e no decurso das habituais negociações entabuladas entre Augusto Castelhano e a titular da Quinta de Montalegre a propósito da prorrogação do contrato de arrendamento da herdade e respeitante ao ano de 1945, não houve possibilidade de qualquer entendimento em virtude de discordâncias insanáveis surgidas de modo inopinado, principalmente devido à verba anual exigida e considerada excessiva pelo arrendatário, além de múltiplos entraves aflorados “à última hora” e que impediram a ultrapassagem do diferendo entre os dois negociadores. Sem nenhuma perspectiva de acordo, o arrendamento da Quinta de Montalegre gorou-se de maneira irremediável e não seria renovado.
Apanhado de surpresa, Augusto Castelhano procurou afanosamente uma herdade disponível nas redondezas onde pudesse prosseguir a sua actividade profissional associada à agricultura. Por mero acaso, e não muito distante da Quinta de Montalegre, conseguiu desencantar uma herdade de média dimensão e que preenchia as suas necessidades mais imediatas, embora a qualidade dos terrenos agrícolas com agora se defrontava fossem relativamente modestos em cotejo com os solos incomparáveis da Quinta de Montalegre. Tratava-se da Quinta do Charquinho localizada já no extremo norte da freguesia de Benfica, sita na Estrada dos Arneiros, 4 e onde, até ao ano de 1940, esteve instalado o célebre Retiro/Restaurante do Charquinho de tão grandes tradições na cidade de Lisboa, mormente no que dizia respeito à excelência da restauração, mas sobretudo pelo afamado palco por onde desfilaram os mais famosos intérpretes do Fado.
Os “Mestres Alfaiates” da cidade de Lisboa posam em Agosto de 1944. António d’Almeida Castelhano, o segundo na 1ª fila a contar da esquerda.
Um sentimento de incomensurável amargura mas onde se misturavam laivos de revolta e incertezas quanto ao futuro próximo acompanhou a família de Augusto Castelhano e os dedicados trabalhadores rurais ao seu serviço quando chegou o momento de abandonaram a Quinta de Montalegre no mês de Novembro de 1944. Levaram consigo todos os seus pertences: gado leiteiro, rezes bovinas de tracção, animais domésticos, cereais armazenados nos celeiros obtidos na colheita de 1944 (trigo, aveia e milho) rações e feno (aveia e trigo) destinadas à alimentação de gado, alfaias agrícolas, barris de vinho, vasilhame e prensa da adega, etc. Tanto o fornecedor das habituais mercearias (Florindo, Estrada da Luz, 181), como o abastecedor das rações ou palha enfardada reservadas ao gado leiteiro e outros (Antunes, Rua do Norte, 35) mantiveram-se.
Uma das últimas fotografias de António Castelhano (tendo ao colo uma criança amiga) em Setembro de 1944 com o tio Manuel Castelhano, familiares e amigos na Quinta de S. João, 152 na Estrada da Luz, Carnide.
No entanto, a família de António Castelhano continuou a residir na moradia que tomara de arrendamento e adoçada ao portão de acesso da Quinta de Montalegre na Azinhaga da Fonte, 22 e para onde fora morar desde o seu casamento com Maria Fernanda e agora, também com a filha Maria Teresa que entretanto perfizera 18 meses de idade. Já integrada na Quinta do Charquinho, a família de Augusto Castelhano vai participar no matrimónio da filha Lucialina d’Almeida Castelhano (resultante do primeiro casamento de Augusto Castelhano e Maria Aurora) que casaria com Joaquim dos Santos Monteiro. O enlace realizou-se na Igreja Paroquial de Benfica no dia 24 de Dezembro de 1944 e à cerimónia nupcial presidiu o pároco Matias Augusto Rosa. O casal irá residir durante doze meses na Quinta do Charquinho ocupando parte da esplêndida mansão da titular herdade (D. Irene Seixas) e cedida a título gracioso. Entretanto, a família de Augusto Castelhano amplia-se com o nascimento de mais uma criança no dia 12 de Setembro de 1945 e a quem seria dado o nome de Orlando Manuel. A cerimónia de baptismo foi realizada na Igreja Paroquial de Benfica (Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica) e tendo como padrinhos, a irmã Maria Manuela e Orlando dos Santos Monteiro, irmão de Joaquim dos Santos Monteiro, o qual no ano anterior casara com Lucialina Castelhano.
António d’Almeida Castelhano, vulgo o “Bonifácio”, faleceu a 20 de Dezembro de 1945 e foi sepultado no Cemitério de Benfica.
Mas o ano de 1945 vai revelar-se particularmente funesto para a família de Augusto Castelhano. Além do abandono forçado da Quinta de Montalegre quase no termo de 1944, António Castelhano, o filho primogénito do primeiro casamento de Augusto Castelhano e Maria Aurora, adoece no início de 1945 e, embora sujeito a tratamento médico intensivo no Hospital de Dona Estefânia onde fora internado, não conseguiu resistir à tuberculose pulmonar que o atingiu em cheio. Sem qualquer hipótese de recuperação, António Castelhano expirou no dia 20 de Dezembro de 1945. Sepultado no Cemitério de Benfica, deixou órfãs duas filhas de tenra idade, Maria Teresa e Maria Adelaide (falecida a 24 de Fevereiro de 1949), além da jovem viúva Maria Fernanda que entretanto voltaria a constituir uma nova família em 27 de Outubro de 1948 quando casou com António dos Santos Júnior. Deste matrimónio resultará o nascimento (23 de Julho de 1949) de uma menina, Maria Isabel Vilanova dos Santos.
Maria Helena d’Almeida Castelhano faleceu a 4 de Fevereiro de 1949 com apenas 19 anos de idade incompletos e foi sepultada no Cemitério de Benfica.
E como uma desgraça nunca vem só, Maria Helena, a filha mais nova de Augusto Castelhano também contraiu tuberculose pulmonar no início da Primavera de 1948 e após internamento durante alguns meses no Hospital de Santo António dos Capuchos de Lisboa onde lhe foram prestados os cuidados médicos adequados, mas que não resultaram, retornou no mês de Setembro à sua residência na Quinta do Charquinho. Por fim, envolta em penoso sofrimento, sucumbiu a 4 de Fevereiro de 1949 com a idade de apenas 18 anos e 8 meses tendo a sua morte causado um sentimento de inconsolável mágoa em toda a família. Os seus restos mortais repousam no Cemitério de Benfica. Maria Manuela, irmã de Maria Helena, também acabou contaminada pela temível enfermidade, contudo e depois de apropriados tratamentos médicos logrou sobreviver até aos dias de hoje mas apenas com um único pulmão.
Escoaram-se escassos meses e não tardou em constatar-se que as reais razões das dificuldades colocadas pela titular da Quinta de Montalegre aquando da renovação do contrato de arrendamento referente ao ano de 1945 tinham como objectivo central, a viabilidade de projectos claramente delineados, tal como vieram “à tona” através de notícias tornadas públicas. Afinal de contas, a proprietária da Quinta de Montalegre já se encontraria em adiantadas negociações com outras entidades públicas e privadas tendo por finalidade, a pura rejeição dos terrenos da Quinta de Montalegre em termos agrícolas e, ao invés, a utilização da espaçosa superfície na feitura de empreendimentos muito mais lucrativos. Senão, vejamos as notas extraídas de uma das publicações sobre a História do Sport Lisboa e Benfica com o título “A CONSTRUÇÃO DO ESTÁDIO DO BENFICA”. “Após um longo processo negocial com a Câmara Municipal de Lisboa, foi finalmente estabelecido no dia 17 de Maio de 1946, que o clube iria abandonar o espaço arrendado no Campo Grande e iria regressar à freguesia de Benfica. O então Ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, é citado como tendo dito: "O Benfica é de Benfica, e é para lá que deverá regressar". E mais à frente em “Os anos de construção”: “Foi identificado um terreno apropriado, com boas acessibilidades e espaço para futuras expansões, perto da Igreja e Largo da Luz, no extremo nordeste da Freguesia de Benfica”. "Luz" era a paróquia histórica da Igreja de Nossa Senhora da Luz. No entanto, estando situado no limite entre os bairros de Benfica e de Carnide, o novo estádio foi inicialmente designado de "Estádio de Carnide". Tinha sido sempre objectivo do clube ser proprietário, não só do estádio, mas também dos terrenos onde este foi erigido, mas inicialmente os terrenos foram cedidos em direito de superfície pela Câmara Municipal de Lisboa. A aquisição plena dos terrenos apenas ocorreu em 1969. Os projectos do estádio tinham sido elaborados a partir de finais dos anos 1940 do século XX por João Simões, antigo jogador do clube”. E cá está, “preto no branco”, os motivos concretos pelos quais não se chegou a acordo sobre a cedência da Quinta de Montalegre no ano de 1945 em termos de arrendamento agrícola. Desde então e até aos primórdios da década de 50 do século XX, os fecundos solos de cultivo da herdade irão quedar-se praticamente a pousio, uma vez que ficaram limitados à recolha da azeitona, à pastorícia ou então, a esporádicas sementeiras de trigo, aveia ou milho de sequeiro e somente em reduzidas parcelas de terreno. Pressentia-se que algo de transcendente aconteceria a breve prazo e um primeiro indício seria dado quando surgiram estudos, medições e fixação de marcos, não só sobre os próprios terrenos da Quinta de Montalegre, mas também noutros espaços das freguesias periféricas da cidade de Lisboa.
O dia 14 de Junho de Junho de 1953 será uma data marcante no calendário, não só para as populações residentes nas freguesias de Benfica e Carnide, mas sobretudo para os apaniguados do futebol: assinala o início oficial dos trabalhos que dariam corpo e alma ao sonho muito antigo do Sport Lisboa e Benfica, isto é, possuir um recinto desportivo próprio e de acordo com a sua incontestável projecção. Além do mais, seria erguido no espaço geográfico onde efectivamente nascera no dia 11 de Setembro de 1908 por fusão de duas nobres instituições dedicadas ao desporto, o Sport Lisboa (Freguesia de Belém) e o Grupo Sport Benfica (Freguesia de Benfica). Equivalia, também, à total destruição da Quinta de Montalegre, a primeira grande herdade da região que se extingue na paisagem de feição verdadeiramente campestre, principal característica das duas freguesias confinantes. Meses antes e após os correspondentes estudos técnicos preliminares e tendo como alvo prioritário a Quinta de Montalegre (Quinta de Carlos Anjos ou Quinta de D. Leonor), seguiram-se os preparativos do local onde seria erguido o futuro complexo desportivo do Sport Lisboa e Benfica. Árduos trabalhos que consistiam na terraplanagem das áreas pré-sinalizadas, já depois do selvático arranque pela raiz de cerca de duas mil oliveiras centenárias de excepcional produção de azeitona e dezenas de árvores de fruta, além do extermínio do bosque de buxos e outras espécies arbóreas que embelezavam a Cascata Monumental.
Poderosas escavadoras avançaram no início dos trabalhos de terraplanagem na construção do Estádio da Luz no dia 14 de Junho de 1953.
Ao “tiro de partida” do notável empreendimento acorreu uma entusiástica multidão que presenciou o “arranque” da poderosa frota de escavadoras e tractores de lagartas, bulldozers e caterpillars, logo secundados por um formidável contingente de centenas de artífices e operários que marcharam armados de vasto ferramental de uso manual. Depois e no impulso seguinte, demoliram as casas de habitação, palheiros e estábulos, arrasaram a viçosa horta (a “menina dos olhos” da herdade) e o tanque de rega, soterraram poços de água potável, destruíram importantes lençóis aquíferos e a mina d’água que abastecia a Cascata Monumental. E no assalto seguinte, revolveram os excepcionais solos de alta produção cerealífera e esventraram o subsolo até à profundidade desejada onde seria assente o chamado “rectângulo de jogo”.
Sob a superior orientação técnica do Engenheiro José Maria Seguro, as obras dispararam a ritmo elevado e, no curto período de tempo que se traduziu em 18 meses, a primeira fase do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, cujo custo seria avaliado em 12.037.638 escudos, encontrava-se pronto a estrear, embora os acessos ao recinto desportivo e durante cerca de 12 anos fossem bastante precários, uma vez que as acessibilidades ao novel campo de jogos apenas se tornava possível através da Azinhaga da Fonte e Rua dos Soeiros, antigos itinerários tornados literalmente insuficientes devido às largas dezenas de milhares de espectadores que afluíam ao estádio do Sport Lisboa e Benfica quando se realizavam jogos de futebol. Porém, a construção de apreciáveis vias de circulação nas décadas de 60/70 do século XX, além da introdução de carreiras de transportes colectivos (autocarros da Carris e Rodoviária Nacional e, mais tarde, Metropolitano), as dificuldades mencionadas foram totalmente ultrapassadas.
O Estádio da Luz foi construído no espaço da antiga Quinta de Montalegre. Na foto de 1954, verifica-se que o parque desportivo do Sport Lisboa e Benfica ainda se encontrava implementado “no meio do nada”. Ao longe, avistam-se as quintas da Granja de Cima, Granja de Baixo, Charquinho, Sarmento (Bom-Nome), Conde de Carnide, o arvoredo da Quinta das Palmeiras, Cemitério de Benfica e os primeiros prédios da Estrada dos Arneiros, etc.
E foi perante uma assistência em delírio calculada em 40.000 adeptos em delírio que a inauguração do Estádio da Luz (mais tarde baptizado de “Catedral” pelos adeptos benfiquistas) se concretizou em pleno no dia 1 de Dezembro de 1954, feriado nacional e data memorativa da Restauração da Independência de Portugal. O jogo de estreia contou com a presença do rival Futebol Clube do Porto que abrilhantou o auspicioso acontecimento, mas a partida inaugural do novo estádio de futebol terminou com a derrota do Sport Lisboa e Benfica por 1-3. Paulatinamente, ao Estádio da Luz foram sendo acrescidas significativas melhorias que bastante engrandeceram a importante estrutura desportiva. Assim sendo, a iluminação seria inaugurada no dia 9 de Junho de 1958 e a conclusão do primeiro segmento do chamado “3º anel” ocorre a 5 de Outubro de 1960, facto que elevará a capacidade de lotação do recinto de futebol para 70.000 espectadores. Note-se que fecho total do “terceiro anel” só seria terminado em 1985, obra de vulto que permitiu aumentar a capacidade do Estádio da Luz até 120.000 espectadores. (1)
Os fortes ventos de mudança soprados a nível global ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial provocará um intenso desenvolvimento em todos os domínios da economia e, apesar das inerentes limitações de ordem vária tão arraigadas no tecido empresarial luso, essa indubitável tendência também se repercute em Portugal, mormente no sector industrial.
Assim sendo, verificou-se um constante fluxo de populações oriundas das regiões rurais do país e que vão colmatando a nítida carência de “mão d’obra” essencial à regular laboração de pujantes empresas emergentes que absorvem milhares de empregados e operários, mormente em relação aos grandes núcleos industriais surgidos nos arrabaldes dos maiores centros populacionais, nomeadamente Lisboa, Porto, Setúbal e outros.
Nos finais dos anos 50 do século XX, a CEL (Fábrica Nacional de Cabos Eléctricos, SARL) e a CAT (Cabos Armados e Telefónicos) juntam-se numa única empresa com a marca “CELCAT”. A fábrica localizava-se na Venda Nova, Amadora e empregava cerca de cerca 700 operários.
Pelos factores citados, a cidade de Lisboa vai conhecer expressivo aumento demográfico e cuja solução seria empurrar vastos extractos da população sempre em crescendo para zonas suburbanas da capital lisboeta. Ora, tal fenómeno terá, como consequência imediata, uma forte pressão sobre extensos espaços ainda disponíveis nas freguesias da periferia da capital, principalmente vastas superfícies agrícolas de numerosas quintas, as quais e depois de loteadas, seriam reservadas à construção de áreas residenciais e à implementação de empresas de diversos ramos de actividade e dimensão, além de relevantes infra-estruturas vitais, seja a abertura novas redes viárias (assimilando, por vezes, antigos itinerários) ocasionadas pelo contínuo aumento do trânsito rodoviário, seja a implantação de variados equipamentos sociais de apoio às populações.
Pois bem, integrado neste contexto histórico e não encontrando obstáculos significativos ao avanço das suas intenções, o influente bloco empresarial da “construção civil” imprime uma dinâmica deveras agressiva que se vai expressando numa imparável explosão urbanística a partir das décadas 50/70 e que naturalmente absorverá o grosso das áreas mais apetecíveis localizadas nos territórios das freguesias de Benfica e Carnide e, a partir de 7 de Fevereiro de 1959, também na freguesia de S. Domingos de Benfica quando esta autarquia local foi criada mercê da anexação de avantajados espaços pertencentes às freguesias de Benfica e S. Sebastião da Pedreira. A talhe de foice, refira-se que a freguesia de Benfica sofreu a maior expansão em termos populacionais na década de 70.
Um atraente edifício, conhecido por “Palacete do espanhol” localizado no gaveto da Estrada de Benfica, 449 com a Estrada do Calhariz de Benfica. Foi demolido na década de 60 do século XX.
Estupefactos e sem qualquer arma de defesa consentânea, fomos assistindo à chegada das betoneiras e dos poderosos guindastes ou outros esquisitos zingarelhos de apoio que levantavam andaimes até aos céus, admirámos as filas intermináveis de camiões atulhados de toneladas de cimento e areia, brita e vergalhões de ferro, observámos os formigueiros de operários, trolhas e outros artífices na árdua azáfama de abrir caboucos indispensáveis ao plantio de florestas de betão armado de todas as cores, tamanhos e feitios, tendo como finalidade indiscutível, alterar de maneira radical a paisagem rústica que tanto nos fascinava e assumindo cada vez mais um inegável carácter urbano. Enfim, os desígnios propostos pela “nova ordem” em ascensão vertiginosa e que traduzia numa “guerra sem quartel” contra o mundo rural e o seu modo de vida, serão coroados de êxito a coberto de um processo que a médio prazo implicaria a destruição de imensas áreas onde avultavam quintas de rendimento ou lazer que se notabilizavam por solos de invulgar aptidão agrícola e que englobavam pomares com milhares de árvores de excelente fruta, olivais, amplos espaços verdes e jardins admiráveis, a demolição de casas senhoriais, palácios, palacetes de invulgar interesse histórico, soterraram-se poços, nascentes e linhas d’água, além de azinhagas e caminhos ancestrais, derrubaram-se muros cuja vetustez remontam à noite dos tempos.
Vastas superfícies de terrenos dedicados à lavoura (trigo, aveia, milho), olivicultura e hortícola ficarão desde logo definitivamente impermeabilizados, quer preenchidos por tapetes de asfalto e outros materiais utilizados nas novas malhas viárias e estruturas complementares, quer pela desenfreada construção imobiliária pública ou privada, projectos urbanísticos tantas vezes alvo de críticas acerbas por não corresponderem aos justos anseios das populações residentes.
A antiga Estrada do Poço do Chão, 99. Prédios de habitação construídos em “regime de propriedade horizontal” nos espaços da Quinta da Granja de Cima, à esquerda e, em segundo plano e ao centro, ocupando a área espacial da Quinta das Palmeiras.
Acentuam-se alterações climáticas adversas e os lençóis freáticos perdem a sua capacidade de reposição devido à exígua infiltração das águas pluviais originando, periodicamente e nalguns locais específicos, graves inundações quando desabam chuvas copiosas nas estações invernosas. Uma nova realidade emergia triunfante em confronto aberto com uma época que terminara o seu ciclo de vida. Agora, inúmeras urbanizações florescem ao sabor de um qualquer empreiteiro de ocasião e de bolso cheio, mas onde a escassez de espaços verdes se tornava verdadeiramente gritante; cavaram-se túneis (rodoviários e ferroviários) e outros caminhos subterrâneos, rasgaram-se amplas avenidas sobrevoadas por viadutos ou passagens aéreas pedonais, tal como se poderá observar na Avenida do Colégio Militar, a Avenida dos Lusíadas, além da chamada 2ª Circular de Lisboa (2), via que sobressai pelo intenso e caótico trânsito rodoviário. Entretanto, o declínio inexorável do mundo rural nas freguesias de Benfica e Carnide intensifica-se e a rápida transição para uma dimensão diferente vai despontando: o universo de cariz, dito urbano. Verificam-se contínuos movimentos de abandono das explorações agrícolas tradicionais na região e a irrupção de incontáveis projectos, tanto de redes viárias de escoamento rápido de trânsito, imóveis de rendimento, parques desportivos ou de lazer, como empresas de diversos ramos de actividade (comercial e industrial) como de bairros camarários de índole social: Padre Cruz (Quinta da Pentieira), Pedralvas (Quinta das Pedralvas, antiga Quinta do César), Santa Cruz (Quinta da Feiteira de Cima, Quinta das Garridas, Quinta da Casquilha e Quinta dos Baldaias) e Charquinho (Quinta do Charquinho). Adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa aos seus proprietários (escritura notarial em 11/10/1948), o projecto elaborado pela Câmara Municipal de Lisboa para a Quinta do Charquinho incluía, além do bairro social de renda económica (concluído em 1962/63), o alargamento do Cemitério de Benfica (terminado em 1959/60) e vários lotes destinados à construção de prédios em regime de propriedade horizontal. O desmantelamento da Quinta do Charquinho implicou o encerramento da Fábrica Portuguesa de Pregaria (Ludgero Alvarez) e da exploração agrícola e leiteira de Augusto Castelhano por recusa dos requerimentos apresentados no ano de 1958 à autarquia lisboeta.
O agricultor Augusto Rodrigues Castelhano que nos períodos entre 1926/1944 e 1945/1960 explorou em termos agrícolas as quintas de Montalegre e Charquinho.
Não foram concedidas quaisquer indemnizações, não obstante quando Augusto Castelhano desocupou a Quinta do Charquinho em meados do ano de 1960, a Câmara Municipal de Lisboa disponibilizou, por meio de arrendamento, casa de habitação na freguesia de Carnide. Ainda assim, o agricultor Augusto Castelhano continuará a manter uma exploração leiteira em escala reduzida até 1962 quando e por motivos de saúde decidiu desfazer-se de todos os seus haveres e regressar à sua terra natal (Salreu, Estarreja) no dia 15 de Agosto de 1962. Apoquentado por problemas de saúde e que que foram agravando desde que sofreu o primeiro AVC em 1955, Augusto Castelhano apagou-se serenamente e em paz a 12 de Janeiro de 1970 com a idade de 76 anos tendo sido sepultado em campa rasa no cemitério de Salreu. A Quinta de Montalegre varrida da paisagem Actualmente, a área espacial onde se situava a antiga Quinta de Montalegre e que foi varrida sem contemplações do panorama da Freguesia de Benfica, encontra-se totalmente irreconhecível. Até aos anos 80 do século XX e nos devastados “campos de batalha” ainda permaneciam as paredes da moradia onde residiu a família de António Castelhano e as ruínas da célebre Cascata Monumental, além da ancestral Azinhaga da Fonte, mas em consequência de novos arruamentos e a construção de imóveis de habitação de grande porte, além da rectificação desta via que irá sofrer alterações de monta no seu traçado primitivo e agora baptizada de Avenida do Colégio Militar, tudo desapareceu com excepção de um troço da antiga artéria com cerca de duas centenas de metros e que engloba algumas casas de habitação e os edifícios degradados da Quinta das Belgas e da Quinta de Santo António adoçadas ao complexo do Colégio Militar, as quais e milagrosamente ainda resistem. Até quando?
A Quinta de Montalegre esventrada. Na foto, as ruínas da moradia onde residiu a família de António Castelhano junto à Azinhaga da Fonte e, em segundo plano e ao longe, os palacetes das Quintas da Granja de Baixo e de Cima (ao centro) e ainda, à direita, a mata da Quinta das Palmeiras ou Mata do Galla.
Não obstante e embora transcorridas sete décadas e meia, a Quinta de Montalegre e o Bonifácio continuaram a ser recordados por amigos de António Castelhano moradores da freguesia de Carnide e agregados numa pequena tertúlia que se formara no âmbito da oficina de reparação de automóveis de Josué Baptista instalada nos casarões cedidos pelo titular da Quinta do Conde de Carnide e onde, pessoalmente e com imenso prazer, frequentemente participava. Pouco a pouco e com desaparecimento físico de tantos amigos que encetaram uma viagem para o Além sem regresso e a extinção da própria oficina, apenas ficou a lembrança dos bons momentos de franco convívio que ali passámos.
A oficina de reparação/auto de Josué Baptista em 1972 instalada nos casarões da Quinta do Conde de Carnide. Em primeiro plano, as irmãs Maria Helena e Paula Maria Castelhano.
Ainda mais duas referências respeitantes à descida de “Bonifácio” na Quinta de Montalegre: Maria Augusta Marques (esposa de Augusto Castelhano) faleceu no Hospital de Visconde de Salreu (Estarreja) no dia 23 de Dezembro de 1996 com a idade de 94 anos no seguimento de uma broncopneumonia contraída poucos dias antes. O seu corpo desceu à terra no cemitério da freguesia de Salreu, concelho de Estarreja; Maria Fernanda de Oliveira Vilanova (viúva de António Castelhano), cuja vida foi ceifada a 30 de Outubro de 1996 com a idade de 74 anos em consequência de graves ferimentos originados num brutal acidente de autocarro ocorrido em S. Benito, Villanueva (Espanha). Encontra-se sepultada no Cemitério da Ajuda. Presentemente, tanto quanto sabemos de concreto, somente restam duas testemunhas oculares que presenciaram a descida de “Bonifácio” na Quinta de Montalegre no dia 18 de Junho de 1939: Maria Manuela d’Almeida Castelhano, agora com 86 anos de idade (filha de Augusto Rodrigues Castelhano e irmã de António Castelhano e alcunhado de “Bonifácio”, além de António Ferreira Salvador (“António Russo”), o amigo de sempre e antigo trabalhador rural na Quinta de Montalegre e que já ultrapassou a fasquia dos 90 anos.
Notas finais
A longa trajectória no tempo e no espaço em torno da Quinta de Montalegre e do “Bonifácio” chegou ao termo da caminhada. Alinhavar os elementos julgados interessantes por mais insignificantes que nos parecessem mas imprescindíveis ao desenvolvimento do tema em questão tornou-se árdua tarefa embora empolgante e que nos proporcionou inusitada satisfação. Recorremos de modo exaustivo a registos de várias origens e aos suportes fotográficos de jornais e revistas ou cedidos por familiares e amigos, além da auscultação dos raríssimos sobreviventes e familiares que presenciaram os acontecimentos aqui descritos. E foi também um verdadeiro desafio à própria memória, escarvando os fundos do bornal de recordações à cata de ínfimos pormenores que nos pudessem ser de alguma utilidade e para um melhor conhecimento, não só da tão esquecida Quinta de Montalegre como do próprio local onde fora implantada numa data perdida no tempo e que agora jaz sepultada sob colossais montanhas de cimento armado e asfalto. O mundo que acompanhámos a par e passo na sua espantosa metamorfose extinguiu-se. A freguesia de Benfica despojou-se definitivamente da antiga fisionomia rural, saudável e arejada, e adquiriu um insípido traço urbano semelhante ao conjunto das restantes freguesias do concelho de Lisboa. A paisagem campestre de excepcional fascínio, os horizontes alargados até onde vista poderia alcançar, a inigualável amenidade climatérica bafejada, a sul, pela proximidade benfazeja da Serra de Monsanto e da mancha verde do Parque Florestal, a cordialidade das gentes nobres e laboriosas que ali residiam ou exerciam os seu mister, características únicas com que a divina natureza abençoou o território da freguesia de Benfica e que de modo tão peculiar maravilhava os nossos sentidos, perderam-se para sempre. Ficou a imorredoira saudade duma época incontornável e algo prodigiosa.
Notas:
(1)- Estádio da Luz
O complexo desportivo do Sport Lisboa e Benfica comportava ainda as seguintes estruturas: Pavilhão dos Desportos (15/05/1965); Campo 2 (campo pelado:1968; campo relvado: 1974; sintético: 1997) Campo 3 (relvado: 17/10/1973); Pista de Atletismo (18/05/1974) Campo 4 (pelado: 1975; reorientado:1978; relvado:1989) 8 Courts de Ténis (28/12/1975); Piscina (23/09/1978) Pavilhão Polivalente (28/02/1982); 3 Courts de Ténis (1983) Piscina de Aprendizagem de Natação (30/12/1985) Em 28 de Setembro de 2001, a Assembleia Geral dos Sócios do clube votou favoravelmente a construção de um novo estádio.
Assim e no âmbito da realização do Euro 2004, o antigo Estádio da Luz seria demolido e num espaço adjacente (a sul) foi construído um novo recinto desportivo cuja inauguração teve lugar no dia 25 de Outubro de 2003 com um jogo de carácter amigável contra a equipa uruguaia do Nacional de Montevideu, tendo o Sport Lisboa e Benfica vencido com o resultado final de 2-1. O Estádio da Luz também foi escolhido como palco onde se disputou a final do torneio de futebol do Euro 2004.
(2)- A 2ª Circular de Lisboa (Segunda Circular)
A Segunda Circular de Lisboa (2ª Circular), via rápida urbana da cidade de Lisboa, começou a ser construída no início da década de 60 do século XX e, no seu trajecto abraçará toda a superfície do complexo do Estádio da Luz ao descrever uma trajectória em arco desde a confluência da antiga Azinhaga da Fonte (a sudoeste) com a Estrada de Benfica (início do IC19), cruza a área da antiga Quinta de Montalegre e após ultrapassar o viaduto sobre a Estrada da Luz (a nascente) prolonga-se até ao Campo Grande, Rotunda do Relógio, etc. A 2ª Circular, constituída por um eixo formado pelo enfiamento de três avenidas, permite a ligação entre a parte oriental da cidade e a sua zona ocidental e considerada uma das vias portuguesas com maior densidade de tráfego em “horas de ponta”, é constituída por um eixo formado pelo enfiamento de três avenidas. No seu traçado original, a 2ª Circular incluía a Avenida Marechal Carmona (depois de 1974, Avenida General Norton de Matos) entre o acesso da Estrada da Luz e o Viaduto do Campo Grande; a Avenida Marechal Craveiro Lopes (desde o Viaduto do Campo Grande ao acesso da A1 em Sacavém e a Avenida Marechal Gomes da Costa, sendo por essa circunstância, informalmente conhecida por “Avenida dos Três Marechais”.
A 2ª Circular de Lisboa em construção no ano de 1961 e à direita, uma das torres de iluminação e parte da bancada do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, duas das estruturas que ocuparam o espaço da antiga Quinta de Montalegre. Em segundo plano, os edifícios do Colégio Militar.
Em 2014 e em memória do antigo futebolista, ao troço da 2ª Circular que passa em frente ao Estádio da Luz foi atribuído a designação de Avenida Eusébio Ferreira da Silva (25-1-1942/5-1-2014), deliberação tomada por unanimidade de todas as forças políticas representadas na Assembleia Municipal de Lisboa A inauguração da nova nomenclatura da via ocorreu quando se completou um ano após o falecimento do notável atleta e por essa razão, a Avenida General Norton de Matos seria encurtada entre o início do IC19, em Benfica, e o acesso da Estrada da Luz. O Centro Comercial Colombo será inaugurado no dia 15 de Setembro de 1997 e também nesse mesmo ano, seria aberto ao trânsito rodoviário a Avenida Lusíada, via rápida urbana e essencial elo de ligação entre o centro da capital e a periferia. Possui acessos desnivelados, quer para a Avenida do Colégio Militar e Avenida General Norton de Matos, quer para a Estrada da Luz, Eixo Norte-Sul e Avenida dos Combatentes. Por intermédio desta artéria, acede-se directamente ao Centro Comercial Colombo e ao Estádio da Luz. A estação do Colégio Militar/Luz (Linha Azul) do Metropolitano de Lisboa construída no âmbito da expansão da rede do “Metro” à zona de Benfica entre as estações de Carnide e Alto dos Moinhos abriu ao público a 14 de Outubro de 1988 conjuntamente com as estações das Laranjeiras e Alto dos Moinhos. O projecto arquitectónico da estação foi da autoria do arquitecto António J. Mendes e está localizada na Avenida do Colégio Militar junto ao cruzamento com a Avenida Lusíada. Esta estrutura possibilita o acesso fácil ao Centro Comercial Colombo, Estádio da Luz e terminal de várias carreiras de autocarros urbanas e suburbanas. Em 1997, o Metropolitano prolongará o seu trajecto com as estações de Carnide e Pontinha e, em 2004, concluirá a Linha Azul com o troço da Pontinha, Alfornelos e a estação terminal da Amadora/Este, Falagueira.
*** O autor jamais respeitará as normas do Novo Acordo Ortográfico.
A horta da Quinta de Montalegre na Primavera de 1940. Os hortelões António Ferreira Salvador (“António Russo”), Gonçalo e Godinho, o vaqueiro Manuel Rodrigues (Ti’Conde), o “tio Augusto” (casado com Olívia Marques, irmã de Maria Augusta, a 2ª esposa de Augusto Castelhano) com o sobrinho Carlos Alberto ao colo, o primogénito do casal Augusto Castelhano e Maria Augusta Marques.
(Arquivo de Fausto Castelhano)
Os excelentes produtos hortícolas recolhidos nos generosos solos da horta, beneficiados, tanto pela abundância de água do poço, como pela adição no tempo próprio de adubo natural (matéria orgânica das rezes) e trabalhada habilmente por hortelões talentosos, tinham escoamento rápido e garantido, quer na venda directa à população das proximidades da herdade, quer no abastecimento diário aos mercados públicos da cidade de Lisboa. Os cereais, principalmente trigo, vão atingir valores altíssimos em tempo de guerra e agora, adquiridos directamente pelo Estado no intuito declarado de evitar especulações face à extrema penúria da maioria da população e onde fora decretado o “Racionamento” de géneros alimentícios básicos (incluindo o pão), combustíveis, etc. e que se prolongaria até muito depois do termo da 2ª Guerra Mundial, mas afectando, sobretudo as camadas populacionais mais humildes. Entretanto, outros acontecimentos de relevo foram sucedendo na Quinta de Montalegre. Assim, a 11 de Maio de 1940, a família de Augusto Castelhano e Maria Augusta Marques alargou-se com o nascimento do segundo filho, Fausto Augusto. Porém, fosse por imperdoável desleixo, fosse devido a qualquer outra causa nunca devidamente esclarecida, embora o nascimento tenha ocorrido na cidade de Lisboa (Quinta de Montalegre, Freguesia de Benfica), o registo da criança somente seria concretizado oficialmente na freguesia de Salreu (Concelho de Estarreja, distrito de Aveiro) no dia 11 de Agosto de 1941, tal como consta do seu Bilhete de Identidade. Tinham decorrido dezoito meses desde a irregularidade então cometida e que jamais seria rectificada, todavia o prior da Igreja Matriz de S. Martinho de Salreu, pároco José Leitão e que no dia 24 de Agosto de 1941 presidiu ao baptismo dum rapazinho já crescidote, não deixou passar às claras a flagrante incorrecção e, sem a mais leve hesitação, elaborou um documento autenticado com o Selo Branco da Paróquia de S. Martinho de Salreu, Estarreja, Diocese de Aveiro onde fez questão de assentar, não só o local onde efectivamente ocorrera o nascimento da criança (Freguesia de Benfica, Concelho de Lisboa), como também a data correcta (11 de Maio de 1940) onde tal ocorrência tivera lugar acautelando-se, de maneira assaz expedita, posteriores transtornos que lhe fossem assacados. Apresentaram-se à cerimónia como padrinhos de baptismo, a irmã Lucialina e o primo Fausto, filho de Maria Marques, uma das irmãs de Maria Augusta Marques, a esposa de Augusto Castelhano.
Os manos Carlos Alberto (ao volante) e Fausto Augusto no automóvel azul (a pedais) em 1941 na Quinta de Montalegre junto ao portão da Rua dos Soeiros, 193.
(Arquivo de Fausto Castelhano)
Quanto a António Castelhano tornara-se, de um dia para o outro, autêntico herói popular e apontado como ídolo aos olhos dos seus familiares, amigos ou simples conhecidos, quer zona do seu local de trabalho (Rua Tomás Ribeiro, 17 em Lisboa, quer nas proximidades onde residia ou se deslocava, nomeadamente nas freguesias de Benfica e Carnide. Pois bem, ao derredor da brilhante proeza de António Castelhano gerou-se um vagalhão de indiscutível admiração e a fama conquistada “a pulso” na histórica tarde do dia 18 de Junho de 1939 aquando da “captura” do Bonifácio na Quinta de Montalegre repercutiu-se ao longo de décadas, mesmo depois do seu desaparecimento físico. Ao mesmo tempo, a sua identidade também se vai desvanecendo pouco a pouco e, por fim, desaparece sem deixar qualquer rasto quando amigos ou simples anónimos começaram a mencionar António d’Almeida Castelhano como António “Bonifácio” ou apenas pelo breve e carinhoso apodo de “Bonifácio”. E será assim que ficará crismado p’ra sempre, tal como se viria a constatar após volvidas várias décadas. O dia 28 de Dezembro de 1941 será assinalado por um afortunado evento na sequência de frutuoso idílio entre António Castelhano e Maria Fernanda. O Destino teve artes de aproximar os dois jovens quando António optou pela profissão de alfaiate e se empregou como aprendiz (posteriormente, Ajudante e mais tarde, promovido a Mestre) na Alfaiataria Alberto Borges dando ensejo aos primeiros olhares de mútua simpatia com Maria Fernanda, vizinha e estudante na Escola Industrial de Fonseca Benevides e moradora Rua Tomás Ribeiro, 19 (Vila Pinto, nº2 Rés/Chão, D.to), ou seja, “porta com porta” com estabelecimento onde António Castelhano passara a laborar diariamente.
O Bilhete de Identidade do Ano Lectivo de 1934/1935 de Maria Fernanda de Oliveira Vilanova quando frequentava a Escola Industrial de Fonseca Benevides e conheceu António Castelhano.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Enfim, apaixonaram-se por fortes laços de afeição e após prolongado e feliz namoro, António d’Almeida Castelhano de 21 anos, agora um conceituado “mestre alfaiate” reconhecido no seio da respectiva classe profissional, e Maria Fernanda de Oliveira Vilanova de 19 anos de idade e natural da Freguesia de S. Sebastião da Pedreira (Lisboa) onde nascera a 29 de Maio de 1922, entenderam que chegara a hora de “juntar os trapinhos” e passar ao patamar seguinte: o matrimónio.
O casamento de António d’Almeida Castelhano e Maria Fernanda de Oliveira Vilanova realizado na Igreja de Santo Condestável (Lisboa) no dia 28 de Dezembro de 1941.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
O acto nupcial efectuou-se na Igreja de Santo Condestável (Lisboa) e a bênção do Sacramento do Matrimónio foi dada pelo pároco Francisco Maria da Silva. O noivo foi apadrinhado por Joaquim da Silva Marques e Zulmira de Oliveira Marques e, pela noiva, apresentaram-se Alberto Ferreira Borges e Maria Amélia Ferreira. O requintado “Copo de Água” foi servido na prestigiada Doçaria “A Portugália”, Avenida Fontes Pereira de Melo, 11 em Lisboa.
António Castelhano em 1942 em pleno milheiral que rodeava a moradia onde residia (após o seu casamento com Maria Fernanda de Oliveira Vilanova) junto ao portão de acesso da Quinta de Montalegre na Azinhaga da Fonte, 22. Repare-se nas tiras de papel de protecção coladas nos vidros das janelas em caso de eventual bombardeamento na 2ª Guerra Mundial.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Casadinhos de fresco e depois de concretizado o contrato de arrendamento com a proprietária (D. Leonor Anjos), os noivos fixariam a sua residência numa pequena moradia integrada na Quinta de Montalegre e situada junto a um dos portões de acesso da herdade, sito na Azinhaga da Fonte, 22.
Maria Teresa Vilanova Castelhano fotografada aos 8 meses de idade (Janeiro de 1944), a filha primogénita de António d’Almeida Castelhano e de Maria Fernanda de Oliveira Vilanova.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Do enlace matrimonial de António Castelhano e Maria Fernanda vão resultar duas filhas: Maria Teresa, cujo nascimento ocorre no dia 22 de Maio de 1943 e Maria Adelaide, (Lálá) que vem ao mundo a 18 de Setembro de 1945, mas infelizmente e depois de ter contraído tuberculose pulmonar, viria a falecer a 24 de Fevereiro de 1949.
As comemorações do 5º aniversário da aterragem de Bonifácio na Quinta de Montalegre
O ribombar de cinco morteiros lançados aos céus por Augusto Castelhano (exímio nesta delicada quanto perigosa função) na manhãzinha do dia 18 de Junho de 1944 e que pelo calendário também “calharia” a um Domingo, deu início aos festejos do 5º aniversário da aterragem do Bonifácio na seara de trigo da Quinta de Montalegre e da sua captura pelo azougado António Castelhano. Tendo como cenário natural as sombras acolhedoras do arvoredo que enquadrava a encantadora Cascata Monumental, as animadas e concorridas festividades desenrolaram-se num ambiente de estupenda confraternização onde prevaleceu a boa disposição e amizade sincera entre os participantes que congregaram familiares, amigos e vizinhos da família Castelhano. Dando largas a incontida alegria, os folgazões divertiram-se em alta escala, petiscaram à larga e refrescaram as goelas de cerveja e vinhos de boa cepa, chalacearam quanto puderam, cantaram até enrouquecerem e dançaram até fartar relembrando Bonifácio e o audaz António Castelhano que num momento de afoiteza e inspiração caçou o célebre “boneco aviador” lançado em paraquedas sobre a região de Carnide.
As comemorações do 5º Aniversário da descida de Bonifácio na Quinta de Montalegre. Na foto, António Castelhano, a esposa Maria Fernanda e a filha Maria Teresa (os últimos, à direita) confraternizam alegremente no dia 18 de Junho de 1944 com um grupo de amigos e vizinhos no bosque que envolvia a Cascata Monumental da Quinta de Montalegre.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Aproveitando a efeméride, foi também a oportunidade de Maria Teresa, a filha do casal António e Maria Fernanda e presente entre os entusiásticos convidados, estrear o vestido branco concebido e executado pelas mãos talentosas do próprio pai com o tecido do pára-quedas com que Bonifácio fora lançado nos céus da cidade de Lisboa cinco anos antes, prenda suplementar ofertada a António Castelhano pelo Conselho de Administração do Diário de Notícias e de outras entidades promotoras do evento e que se dignaram assistir ao acto solene da entrega do prémio pecuniário pela captura do Bonifácio. Tempos de mudança Em Setembro de 1944 e no decurso das habituais negociações entabuladas entre Augusto Castelhano e a titular da Quinta de Montalegre a propósito da prorrogação do contrato de arrendamento da herdade e respeitante ao ano de 1945, não houve possibilidade de qualquer entendimento em virtude de discordâncias insanáveis surgidas de modo inopinado, principalmente devido à verba anual exigida e considerada excessiva pelo arrendatário, além de múltiplos entraves aflorados “à última hora” e que impediram a ultrapassagem do diferendo entre os dois negociadores. Sem nenhuma perspectiva de acordo, o arrendamento da Quinta de Montalegre gorou-se de maneira irremediável e não seria renovado.
António Castelhano em Agosto de 1944 na Cascata Monumental da Quinta de Montalegre.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Apanhado de surpresa, Augusto Castelhano procurou afanosamente uma herdade disponível nas redondezas onde pudesse prosseguir a sua actividade profissional associada à agricultura. Por mero acaso, e não muito distante da Quinta de Montalegre, conseguiu desencantar uma herdade de média dimensão e que preenchia as suas necessidades mais imediatas, embora a qualidade dos terrenos agrícolas com agora se defrontava fossem relativamente modestos em cotejo com os solos incomparáveis da Quinta de Montalegre. Tratava-se da Quinta do Charquinho localizada já no extremo norte da freguesia de Benfica, sita na Estrada dos Arneiros, 4 e onde, até ao ano de 1940, esteve instalado o célebre Retiro/Restaurante do Charquinho de tão grandes tradições na cidade de Lisboa, mormente no que dizia respeito à excelência da restauração, mas sobretudo pelo afamado palco por onde desfilaram os mais famosos intérpretes do Fado.
Os “Mestres Alfaiates” da cidade de Lisboa posam em Agosto de 1944. António d’Almeida Castelhano, o segundo na 1ª fila a contar da esquerda.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Um sentimento de incomensurável amargura mas onde se misturavam laivos de revolta e incertezas quanto ao futuro próximo acompanhou a família de Augusto Castelhano e os dedicados trabalhadores rurais ao seu serviço quando chegou o momento de abandonaram a Quinta de Montalegre no mês de Novembro de 1944. Levaram consigo todos os seus pertences: gado leiteiro, rezes bovinas de tracção, animais domésticos, cereais armazenados nos celeiros obtidos na colheita de 1944 (trigo, aveia e milho) rações e feno (aveia e trigo) destinadas à alimentação de gado, alfaias agrícolas, barris de vinho, vasilhame e prensa da adega, etc. Tanto o fornecedor das habituais mercearias (Florindo, Estrada da Luz, 181), como o abastecedor das rações ou palha enfardada reservadas ao gado leiteiro e outros (Antunes, Rua do Norte, 35) mantiveram-se.
Uma das últimas fotografias de António Castelhano (tendo ao colo uma criança amiga) em Setembro de 1944 com o tio Manuel Castelhano, familiares e amigos na Quinta de S. João, 152 na Estrada da Luz, Carnide.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
No entanto, a família de António Castelhano continuou a residir na moradia que tomara de arrendamento e adoçada ao portão de acesso da Quinta de Montalegre na Azinhaga da Fonte, 22 e para onde fora morar desde o seu casamento com Maria Fernanda e agora, também com a filha Maria Teresa que entretanto perfizera 18 meses de idade. Já integrada na Quinta do Charquinho, a família de Augusto Castelhano vai participar no matrimónio da filha Lucialina d’Almeida Castelhano (resultante do primeiro casamento de Augusto Castelhano e Maria Aurora) que casaria com Joaquim dos Santos Monteiro. O enlace realizou-se na Igreja Paroquial de Benfica no dia 24 de Dezembro de 1944 e à cerimónia nupcial presidiu o pároco Matias Augusto Rosa. O casal irá residir durante doze meses na Quinta do Charquinho ocupando parte da esplêndida mansão da titular herdade (D. Irene Seixas) e cedida a título gracioso. Entretanto, a família de Augusto Castelhano amplia-se com o nascimento de mais uma criança no dia 12 de Setembro de 1945 e a quem seria dado o nome de Orlando Manuel. A cerimónia de baptismo foi realizada na Igreja Paroquial de Benfica (Igreja de Nossa Senhora do Amparo de Benfica) e tendo como padrinhos, a irmã Maria Manuela e Orlando dos Santos Monteiro, irmão de Joaquim dos Santos Monteiro, o qual no ano anterior casara com Lucialina Castelhano.
António d’Almeida Castelhano, vulgo o “Bonifácio”, faleceu a 20 de Dezembro de 1945 e foi sepultado no Cemitério de Benfica.
(Arquivo de Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Mas o ano de 1945 vai revelar-se particularmente funesto para a família de Augusto Castelhano. Além do abandono forçado da Quinta de Montalegre quase no termo de 1944, António Castelhano, o filho primogénito do primeiro casamento de Augusto Castelhano e Maria Aurora, adoece no início de 1945 e, embora sujeito a tratamento médico intensivo no Hospital de Dona Estefânia onde fora internado, não conseguiu resistir à tuberculose pulmonar que o atingiu em cheio. Sem qualquer hipótese de recuperação, António Castelhano expirou no dia 20 de Dezembro de 1945. Sepultado no Cemitério de Benfica, deixou órfãs duas filhas de tenra idade, Maria Teresa e Maria Adelaide (falecida a 24 de Fevereiro de 1949), além da jovem viúva Maria Fernanda que entretanto voltaria a constituir uma nova família em 27 de Outubro de 1948 quando casou com António dos Santos Júnior. Deste matrimónio resultará o nascimento (23 de Julho de 1949) de uma menina, Maria Isabel Vilanova dos Santos.
Maria Helena d’Almeida Castelhano faleceu a 4 de Fevereiro de 1949 com apenas 19 anos de idade incompletos e foi sepultada no Cemitério de Benfica.
(Arquivo de Fausto Castelhano)
E como uma desgraça nunca vem só, Maria Helena, a filha mais nova de Augusto Castelhano também contraiu tuberculose pulmonar no início da Primavera de 1948 e após internamento durante alguns meses no Hospital de Santo António dos Capuchos de Lisboa onde lhe foram prestados os cuidados médicos adequados, mas que não resultaram, retornou no mês de Setembro à sua residência na Quinta do Charquinho. Por fim, envolta em penoso sofrimento, sucumbiu a 4 de Fevereiro de 1949 com a idade de apenas 18 anos e 8 meses tendo a sua morte causado um sentimento de inconsolável mágoa em toda a família. Os seus restos mortais repousam no Cemitério de Benfica. Maria Manuela, irmã de Maria Helena, também acabou contaminada pela temível enfermidade, contudo e depois de apropriados tratamentos médicos logrou sobreviver até aos dias de hoje mas apenas com um único pulmão.
O princípio do fim da Quinta de Montalegre
Escoaram-se escassos meses e não tardou em constatar-se que as reais razões das dificuldades colocadas pela titular da Quinta de Montalegre aquando da renovação do contrato de arrendamento referente ao ano de 1945 tinham como objectivo central, a viabilidade de projectos claramente delineados, tal como vieram “à tona” através de notícias tornadas públicas. Afinal de contas, a proprietária da Quinta de Montalegre já se encontraria em adiantadas negociações com outras entidades públicas e privadas tendo por finalidade, a pura rejeição dos terrenos da Quinta de Montalegre em termos agrícolas e, ao invés, a utilização da espaçosa superfície na feitura de empreendimentos muito mais lucrativos. Senão, vejamos as notas extraídas de uma das publicações sobre a História do Sport Lisboa e Benfica com o título “A CONSTRUÇÃO DO ESTÁDIO DO BENFICA”. “Após um longo processo negocial com a Câmara Municipal de Lisboa, foi finalmente estabelecido no dia 17 de Maio de 1946, que o clube iria abandonar o espaço arrendado no Campo Grande e iria regressar à freguesia de Benfica. O então Ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, é citado como tendo dito: "O Benfica é de Benfica, e é para lá que deverá regressar". E mais à frente em “Os anos de construção”: “Foi identificado um terreno apropriado, com boas acessibilidades e espaço para futuras expansões, perto da Igreja e Largo da Luz, no extremo nordeste da Freguesia de Benfica”. "Luz" era a paróquia histórica da Igreja de Nossa Senhora da Luz. No entanto, estando situado no limite entre os bairros de Benfica e de Carnide, o novo estádio foi inicialmente designado de "Estádio de Carnide". Tinha sido sempre objectivo do clube ser proprietário, não só do estádio, mas também dos terrenos onde este foi erigido, mas inicialmente os terrenos foram cedidos em direito de superfície pela Câmara Municipal de Lisboa. A aquisição plena dos terrenos apenas ocorreu em 1969. Os projectos do estádio tinham sido elaborados a partir de finais dos anos 1940 do século XX por João Simões, antigo jogador do clube”. E cá está, “preto no branco”, os motivos concretos pelos quais não se chegou a acordo sobre a cedência da Quinta de Montalegre no ano de 1945 em termos de arrendamento agrícola. Desde então e até aos primórdios da década de 50 do século XX, os fecundos solos de cultivo da herdade irão quedar-se praticamente a pousio, uma vez que ficaram limitados à recolha da azeitona, à pastorícia ou então, a esporádicas sementeiras de trigo, aveia ou milho de sequeiro e somente em reduzidas parcelas de terreno. Pressentia-se que algo de transcendente aconteceria a breve prazo e um primeiro indício seria dado quando surgiram estudos, medições e fixação de marcos, não só sobre os próprios terrenos da Quinta de Montalegre, mas também noutros espaços das freguesias periféricas da cidade de Lisboa.
Os derradeiros estertores da Quinta de Montalegre
O dia 14 de Junho de Junho de 1953 será uma data marcante no calendário, não só para as populações residentes nas freguesias de Benfica e Carnide, mas sobretudo para os apaniguados do futebol: assinala o início oficial dos trabalhos que dariam corpo e alma ao sonho muito antigo do Sport Lisboa e Benfica, isto é, possuir um recinto desportivo próprio e de acordo com a sua incontestável projecção. Além do mais, seria erguido no espaço geográfico onde efectivamente nascera no dia 11 de Setembro de 1908 por fusão de duas nobres instituições dedicadas ao desporto, o Sport Lisboa (Freguesia de Belém) e o Grupo Sport Benfica (Freguesia de Benfica). Equivalia, também, à total destruição da Quinta de Montalegre, a primeira grande herdade da região que se extingue na paisagem de feição verdadeiramente campestre, principal característica das duas freguesias confinantes. Meses antes e após os correspondentes estudos técnicos preliminares e tendo como alvo prioritário a Quinta de Montalegre (Quinta de Carlos Anjos ou Quinta de D. Leonor), seguiram-se os preparativos do local onde seria erguido o futuro complexo desportivo do Sport Lisboa e Benfica. Árduos trabalhos que consistiam na terraplanagem das áreas pré-sinalizadas, já depois do selvático arranque pela raiz de cerca de duas mil oliveiras centenárias de excepcional produção de azeitona e dezenas de árvores de fruta, além do extermínio do bosque de buxos e outras espécies arbóreas que embelezavam a Cascata Monumental.
Poderosas escavadoras avançaram no início dos trabalhos de terraplanagem na construção do Estádio da Luz no dia 14 de Junho de 1953.
(Foto Wikipédia)
Ao “tiro de partida” do notável empreendimento acorreu uma entusiástica multidão que presenciou o “arranque” da poderosa frota de escavadoras e tractores de lagartas, bulldozers e caterpillars, logo secundados por um formidável contingente de centenas de artífices e operários que marcharam armados de vasto ferramental de uso manual. Depois e no impulso seguinte, demoliram as casas de habitação, palheiros e estábulos, arrasaram a viçosa horta (a “menina dos olhos” da herdade) e o tanque de rega, soterraram poços de água potável, destruíram importantes lençóis aquíferos e a mina d’água que abastecia a Cascata Monumental. E no assalto seguinte, revolveram os excepcionais solos de alta produção cerealífera e esventraram o subsolo até à profundidade desejada onde seria assente o chamado “rectângulo de jogo”.
Fase do início das obras de construção do Estádio da Luz em 1954.
(Foto Wikipédia)
Sob a superior orientação técnica do Engenheiro José Maria Seguro, as obras dispararam a ritmo elevado e, no curto período de tempo que se traduziu em 18 meses, a primeira fase do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, cujo custo seria avaliado em 12.037.638 escudos, encontrava-se pronto a estrear, embora os acessos ao recinto desportivo e durante cerca de 12 anos fossem bastante precários, uma vez que as acessibilidades ao novel campo de jogos apenas se tornava possível através da Azinhaga da Fonte e Rua dos Soeiros, antigos itinerários tornados literalmente insuficientes devido às largas dezenas de milhares de espectadores que afluíam ao estádio do Sport Lisboa e Benfica quando se realizavam jogos de futebol. Porém, a construção de apreciáveis vias de circulação nas décadas de 60/70 do século XX, além da introdução de carreiras de transportes colectivos (autocarros da Carris e Rodoviária Nacional e, mais tarde, Metropolitano), as dificuldades mencionadas foram totalmente ultrapassadas.
O Estádio da Luz foi construído no espaço da antiga Quinta de Montalegre. Na foto de 1954, verifica-se que o parque desportivo do Sport Lisboa e Benfica ainda se encontrava implementado “no meio do nada”. Ao longe, avistam-se as quintas da Granja de Cima, Granja de Baixo, Charquinho, Sarmento (Bom-Nome), Conde de Carnide, o arvoredo da Quinta das Palmeiras, Cemitério de Benfica e os primeiros prédios da Estrada dos Arneiros, etc.
(Fotografia de Wikipédia)
E foi perante uma assistência em delírio calculada em 40.000 adeptos em delírio que a inauguração do Estádio da Luz (mais tarde baptizado de “Catedral” pelos adeptos benfiquistas) se concretizou em pleno no dia 1 de Dezembro de 1954, feriado nacional e data memorativa da Restauração da Independência de Portugal. O jogo de estreia contou com a presença do rival Futebol Clube do Porto que abrilhantou o auspicioso acontecimento, mas a partida inaugural do novo estádio de futebol terminou com a derrota do Sport Lisboa e Benfica por 1-3. Paulatinamente, ao Estádio da Luz foram sendo acrescidas significativas melhorias que bastante engrandeceram a importante estrutura desportiva. Assim sendo, a iluminação seria inaugurada no dia 9 de Junho de 1958 e a conclusão do primeiro segmento do chamado “3º anel” ocorre a 5 de Outubro de 1960, facto que elevará a capacidade de lotação do recinto de futebol para 70.000 espectadores. Note-se que fecho total do “terceiro anel” só seria terminado em 1985, obra de vulto que permitiu aumentar a capacidade do Estádio da Luz até 120.000 espectadores. (1)
A fisionomia da freguesia de Benfica transfigura-se e vai tomando uma nova fisionomia
Os fortes ventos de mudança soprados a nível global ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial provocará um intenso desenvolvimento em todos os domínios da economia e, apesar das inerentes limitações de ordem vária tão arraigadas no tecido empresarial luso, essa indubitável tendência também se repercute em Portugal, mormente no sector industrial.
Sorefame (Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, S. A. R. L.) foi fundada na Amadora em 1943. Empresa especializada na construção de componentes eléctricos e mecânicos pesados, equipamentos hidromecânicos e importante construtor de material circulante ferroviário em parceria com várias empresas.
(Foto Wikipédia)
Assim sendo, verificou-se um constante fluxo de populações oriundas das regiões rurais do país e que vão colmatando a nítida carência de “mão d’obra” essencial à regular laboração de pujantes empresas emergentes que absorvem milhares de empregados e operários, mormente em relação aos grandes núcleos industriais surgidos nos arrabaldes dos maiores centros populacionais, nomeadamente Lisboa, Porto, Setúbal e outros.
Nos finais dos anos 50 do século XX, a CEL (Fábrica Nacional de Cabos Eléctricos, SARL) e a CAT (Cabos Armados e Telefónicos) juntam-se numa única empresa com a marca “CELCAT”. A fábrica localizava-se na Venda Nova, Amadora e empregava cerca de cerca 700 operários.
(Foto Wikipédia)
Pelos factores citados, a cidade de Lisboa vai conhecer expressivo aumento demográfico e cuja solução seria empurrar vastos extractos da população sempre em crescendo para zonas suburbanas da capital lisboeta. Ora, tal fenómeno terá, como consequência imediata, uma forte pressão sobre extensos espaços ainda disponíveis nas freguesias da periferia da capital, principalmente vastas superfícies agrícolas de numerosas quintas, as quais e depois de loteadas, seriam reservadas à construção de áreas residenciais e à implementação de empresas de diversos ramos de actividade e dimensão, além de relevantes infra-estruturas vitais, seja a abertura novas redes viárias (assimilando, por vezes, antigos itinerários) ocasionadas pelo contínuo aumento do trânsito rodoviário, seja a implantação de variados equipamentos sociais de apoio às populações.
Palacete na Estrada de Benfica, 544 e demolido na década de 70 do século XX.
(Armando Serôdio, 1971 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Pois bem, integrado neste contexto histórico e não encontrando obstáculos significativos ao avanço das suas intenções, o influente bloco empresarial da “construção civil” imprime uma dinâmica deveras agressiva que se vai expressando numa imparável explosão urbanística a partir das décadas 50/70 e que naturalmente absorverá o grosso das áreas mais apetecíveis localizadas nos territórios das freguesias de Benfica e Carnide e, a partir de 7 de Fevereiro de 1959, também na freguesia de S. Domingos de Benfica quando esta autarquia local foi criada mercê da anexação de avantajados espaços pertencentes às freguesias de Benfica e S. Sebastião da Pedreira. A talhe de foice, refira-se que a freguesia de Benfica sofreu a maior expansão em termos populacionais na década de 70.
Um atraente edifício, conhecido por “Palacete do espanhol” localizado no gaveto da Estrada de Benfica, 449 com a Estrada do Calhariz de Benfica. Foi demolido na década de 60 do século XX.
(Artur Goulart, 1960 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Estupefactos e sem qualquer arma de defesa consentânea, fomos assistindo à chegada das betoneiras e dos poderosos guindastes ou outros esquisitos zingarelhos de apoio que levantavam andaimes até aos céus, admirámos as filas intermináveis de camiões atulhados de toneladas de cimento e areia, brita e vergalhões de ferro, observámos os formigueiros de operários, trolhas e outros artífices na árdua azáfama de abrir caboucos indispensáveis ao plantio de florestas de betão armado de todas as cores, tamanhos e feitios, tendo como finalidade indiscutível, alterar de maneira radical a paisagem rústica que tanto nos fascinava e assumindo cada vez mais um inegável carácter urbano. Enfim, os desígnios propostos pela “nova ordem” em ascensão vertiginosa e que traduzia numa “guerra sem quartel” contra o mundo rural e o seu modo de vida, serão coroados de êxito a coberto de um processo que a médio prazo implicaria a destruição de imensas áreas onde avultavam quintas de rendimento ou lazer que se notabilizavam por solos de invulgar aptidão agrícola e que englobavam pomares com milhares de árvores de excelente fruta, olivais, amplos espaços verdes e jardins admiráveis, a demolição de casas senhoriais, palácios, palacetes de invulgar interesse histórico, soterraram-se poços, nascentes e linhas d’água, além de azinhagas e caminhos ancestrais, derrubaram-se muros cuja vetustez remontam à noite dos tempos.
Palacete do Visconde Sanches de Baena na Estrada de Benfica, 609 a 613 e demolido na década de 70.
(Foto de João H. Goulart, 1960 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Vastas superfícies de terrenos dedicados à lavoura (trigo, aveia, milho), olivicultura e hortícola ficarão desde logo definitivamente impermeabilizados, quer preenchidos por tapetes de asfalto e outros materiais utilizados nas novas malhas viárias e estruturas complementares, quer pela desenfreada construção imobiliária pública ou privada, projectos urbanísticos tantas vezes alvo de críticas acerbas por não corresponderem aos justos anseios das populações residentes.
A antiga Estrada do Poço do Chão, 99. Prédios de habitação construídos em “regime de propriedade horizontal” nos espaços da Quinta da Granja de Cima, à esquerda e, em segundo plano e ao centro, ocupando a área espacial da Quinta das Palmeiras.
(Arnaldo Madureira, 1970 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Acentuam-se alterações climáticas adversas e os lençóis freáticos perdem a sua capacidade de reposição devido à exígua infiltração das águas pluviais originando, periodicamente e nalguns locais específicos, graves inundações quando desabam chuvas copiosas nas estações invernosas. Uma nova realidade emergia triunfante em confronto aberto com uma época que terminara o seu ciclo de vida. Agora, inúmeras urbanizações florescem ao sabor de um qualquer empreiteiro de ocasião e de bolso cheio, mas onde a escassez de espaços verdes se tornava verdadeiramente gritante; cavaram-se túneis (rodoviários e ferroviários) e outros caminhos subterrâneos, rasgaram-se amplas avenidas sobrevoadas por viadutos ou passagens aéreas pedonais, tal como se poderá observar na Avenida do Colégio Militar, a Avenida dos Lusíadas, além da chamada 2ª Circular de Lisboa (2), via que sobressai pelo intenso e caótico trânsito rodoviário. Entretanto, o declínio inexorável do mundo rural nas freguesias de Benfica e Carnide intensifica-se e a rápida transição para uma dimensão diferente vai despontando: o universo de cariz, dito urbano. Verificam-se contínuos movimentos de abandono das explorações agrícolas tradicionais na região e a irrupção de incontáveis projectos, tanto de redes viárias de escoamento rápido de trânsito, imóveis de rendimento, parques desportivos ou de lazer, como empresas de diversos ramos de actividade (comercial e industrial) como de bairros camarários de índole social: Padre Cruz (Quinta da Pentieira), Pedralvas (Quinta das Pedralvas, antiga Quinta do César), Santa Cruz (Quinta da Feiteira de Cima, Quinta das Garridas, Quinta da Casquilha e Quinta dos Baldaias) e Charquinho (Quinta do Charquinho). Adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa aos seus proprietários (escritura notarial em 11/10/1948), o projecto elaborado pela Câmara Municipal de Lisboa para a Quinta do Charquinho incluía, além do bairro social de renda económica (concluído em 1962/63), o alargamento do Cemitério de Benfica (terminado em 1959/60) e vários lotes destinados à construção de prédios em regime de propriedade horizontal. O desmantelamento da Quinta do Charquinho implicou o encerramento da Fábrica Portuguesa de Pregaria (Ludgero Alvarez) e da exploração agrícola e leiteira de Augusto Castelhano por recusa dos requerimentos apresentados no ano de 1958 à autarquia lisboeta.
O agricultor Augusto Rodrigues Castelhano que nos períodos entre 1926/1944 e 1945/1960 explorou em termos agrícolas as quintas de Montalegre e Charquinho.
(Arquivo de Fausto Castelhano)
Não foram concedidas quaisquer indemnizações, não obstante quando Augusto Castelhano desocupou a Quinta do Charquinho em meados do ano de 1960, a Câmara Municipal de Lisboa disponibilizou, por meio de arrendamento, casa de habitação na freguesia de Carnide. Ainda assim, o agricultor Augusto Castelhano continuará a manter uma exploração leiteira em escala reduzida até 1962 quando e por motivos de saúde decidiu desfazer-se de todos os seus haveres e regressar à sua terra natal (Salreu, Estarreja) no dia 15 de Agosto de 1962. Apoquentado por problemas de saúde e que que foram agravando desde que sofreu o primeiro AVC em 1955, Augusto Castelhano apagou-se serenamente e em paz a 12 de Janeiro de 1970 com a idade de 76 anos tendo sido sepultado em campa rasa no cemitério de Salreu. A Quinta de Montalegre varrida da paisagem Actualmente, a área espacial onde se situava a antiga Quinta de Montalegre e que foi varrida sem contemplações do panorama da Freguesia de Benfica, encontra-se totalmente irreconhecível. Até aos anos 80 do século XX e nos devastados “campos de batalha” ainda permaneciam as paredes da moradia onde residiu a família de António Castelhano e as ruínas da célebre Cascata Monumental, além da ancestral Azinhaga da Fonte, mas em consequência de novos arruamentos e a construção de imóveis de habitação de grande porte, além da rectificação desta via que irá sofrer alterações de monta no seu traçado primitivo e agora baptizada de Avenida do Colégio Militar, tudo desapareceu com excepção de um troço da antiga artéria com cerca de duas centenas de metros e que engloba algumas casas de habitação e os edifícios degradados da Quinta das Belgas e da Quinta de Santo António adoçadas ao complexo do Colégio Militar, as quais e milagrosamente ainda resistem. Até quando?
A Quinta de Montalegre esventrada. Na foto, as ruínas da moradia onde residiu a família de António Castelhano junto à Azinhaga da Fonte e, em segundo plano e ao longe, os palacetes das Quintas da Granja de Baixo e de Cima (ao centro) e ainda, à direita, a mata da Quinta das Palmeiras ou Mata do Galla.
(Armando Serôdio, 1960 - Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Não obstante e embora transcorridas sete décadas e meia, a Quinta de Montalegre e o Bonifácio continuaram a ser recordados por amigos de António Castelhano moradores da freguesia de Carnide e agregados numa pequena tertúlia que se formara no âmbito da oficina de reparação de automóveis de Josué Baptista instalada nos casarões cedidos pelo titular da Quinta do Conde de Carnide e onde, pessoalmente e com imenso prazer, frequentemente participava. Pouco a pouco e com desaparecimento físico de tantos amigos que encetaram uma viagem para o Além sem regresso e a extinção da própria oficina, apenas ficou a lembrança dos bons momentos de franco convívio que ali passámos.
A oficina de reparação/auto de Josué Baptista em 1972 instalada nos casarões da Quinta do Conde de Carnide. Em primeiro plano, as irmãs Maria Helena e Paula Maria Castelhano.
(Arquivo de Fausto Castelhano)
Ainda mais duas referências respeitantes à descida de “Bonifácio” na Quinta de Montalegre: Maria Augusta Marques (esposa de Augusto Castelhano) faleceu no Hospital de Visconde de Salreu (Estarreja) no dia 23 de Dezembro de 1996 com a idade de 94 anos no seguimento de uma broncopneumonia contraída poucos dias antes. O seu corpo desceu à terra no cemitério da freguesia de Salreu, concelho de Estarreja; Maria Fernanda de Oliveira Vilanova (viúva de António Castelhano), cuja vida foi ceifada a 30 de Outubro de 1996 com a idade de 74 anos em consequência de graves ferimentos originados num brutal acidente de autocarro ocorrido em S. Benito, Villanueva (Espanha). Encontra-se sepultada no Cemitério da Ajuda. Presentemente, tanto quanto sabemos de concreto, somente restam duas testemunhas oculares que presenciaram a descida de “Bonifácio” na Quinta de Montalegre no dia 18 de Junho de 1939: Maria Manuela d’Almeida Castelhano, agora com 86 anos de idade (filha de Augusto Rodrigues Castelhano e irmã de António Castelhano e alcunhado de “Bonifácio”, além de António Ferreira Salvador (“António Russo”), o amigo de sempre e antigo trabalhador rural na Quinta de Montalegre e que já ultrapassou a fasquia dos 90 anos.
Notas finais
A longa trajectória no tempo e no espaço em torno da Quinta de Montalegre e do “Bonifácio” chegou ao termo da caminhada. Alinhavar os elementos julgados interessantes por mais insignificantes que nos parecessem mas imprescindíveis ao desenvolvimento do tema em questão tornou-se árdua tarefa embora empolgante e que nos proporcionou inusitada satisfação. Recorremos de modo exaustivo a registos de várias origens e aos suportes fotográficos de jornais e revistas ou cedidos por familiares e amigos, além da auscultação dos raríssimos sobreviventes e familiares que presenciaram os acontecimentos aqui descritos. E foi também um verdadeiro desafio à própria memória, escarvando os fundos do bornal de recordações à cata de ínfimos pormenores que nos pudessem ser de alguma utilidade e para um melhor conhecimento, não só da tão esquecida Quinta de Montalegre como do próprio local onde fora implantada numa data perdida no tempo e que agora jaz sepultada sob colossais montanhas de cimento armado e asfalto. O mundo que acompanhámos a par e passo na sua espantosa metamorfose extinguiu-se. A freguesia de Benfica despojou-se definitivamente da antiga fisionomia rural, saudável e arejada, e adquiriu um insípido traço urbano semelhante ao conjunto das restantes freguesias do concelho de Lisboa. A paisagem campestre de excepcional fascínio, os horizontes alargados até onde vista poderia alcançar, a inigualável amenidade climatérica bafejada, a sul, pela proximidade benfazeja da Serra de Monsanto e da mancha verde do Parque Florestal, a cordialidade das gentes nobres e laboriosas que ali residiam ou exerciam os seu mister, características únicas com que a divina natureza abençoou o território da freguesia de Benfica e que de modo tão peculiar maravilhava os nossos sentidos, perderam-se para sempre. Ficou a imorredoira saudade duma época incontornável e algo prodigiosa.
Notas:
(1)- Estádio da Luz
O complexo desportivo do Sport Lisboa e Benfica comportava ainda as seguintes estruturas: Pavilhão dos Desportos (15/05/1965); Campo 2 (campo pelado:1968; campo relvado: 1974; sintético: 1997) Campo 3 (relvado: 17/10/1973); Pista de Atletismo (18/05/1974) Campo 4 (pelado: 1975; reorientado:1978; relvado:1989) 8 Courts de Ténis (28/12/1975); Piscina (23/09/1978) Pavilhão Polivalente (28/02/1982); 3 Courts de Ténis (1983) Piscina de Aprendizagem de Natação (30/12/1985) Em 28 de Setembro de 2001, a Assembleia Geral dos Sócios do clube votou favoravelmente a construção de um novo estádio.
A demolição da “Catedral” do Sport Lisboa e Benfica e a construção do actual Estádio da Luz.
(Foto de Wikipédia)
Assim e no âmbito da realização do Euro 2004, o antigo Estádio da Luz seria demolido e num espaço adjacente (a sul) foi construído um novo recinto desportivo cuja inauguração teve lugar no dia 25 de Outubro de 2003 com um jogo de carácter amigável contra a equipa uruguaia do Nacional de Montevideu, tendo o Sport Lisboa e Benfica vencido com o resultado final de 2-1. O Estádio da Luz também foi escolhido como palco onde se disputou a final do torneio de futebol do Euro 2004.
(2)- A 2ª Circular de Lisboa (Segunda Circular)
A Segunda Circular de Lisboa (2ª Circular), via rápida urbana da cidade de Lisboa, começou a ser construída no início da década de 60 do século XX e, no seu trajecto abraçará toda a superfície do complexo do Estádio da Luz ao descrever uma trajectória em arco desde a confluência da antiga Azinhaga da Fonte (a sudoeste) com a Estrada de Benfica (início do IC19), cruza a área da antiga Quinta de Montalegre e após ultrapassar o viaduto sobre a Estrada da Luz (a nascente) prolonga-se até ao Campo Grande, Rotunda do Relógio, etc. A 2ª Circular, constituída por um eixo formado pelo enfiamento de três avenidas, permite a ligação entre a parte oriental da cidade e a sua zona ocidental e considerada uma das vias portuguesas com maior densidade de tráfego em “horas de ponta”, é constituída por um eixo formado pelo enfiamento de três avenidas. No seu traçado original, a 2ª Circular incluía a Avenida Marechal Carmona (depois de 1974, Avenida General Norton de Matos) entre o acesso da Estrada da Luz e o Viaduto do Campo Grande; a Avenida Marechal Craveiro Lopes (desde o Viaduto do Campo Grande ao acesso da A1 em Sacavém e a Avenida Marechal Gomes da Costa, sendo por essa circunstância, informalmente conhecida por “Avenida dos Três Marechais”.
A 2ª Circular de Lisboa em construção no ano de 1961 e à direita, uma das torres de iluminação e parte da bancada do Estádio do Sport Lisboa e Benfica, duas das estruturas que ocuparam o espaço da antiga Quinta de Montalegre. Em segundo plano, os edifícios do Colégio Militar.
(Artur Goulart, 1961- Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa)
Em 2014 e em memória do antigo futebolista, ao troço da 2ª Circular que passa em frente ao Estádio da Luz foi atribuído a designação de Avenida Eusébio Ferreira da Silva (25-1-1942/5-1-2014), deliberação tomada por unanimidade de todas as forças políticas representadas na Assembleia Municipal de Lisboa A inauguração da nova nomenclatura da via ocorreu quando se completou um ano após o falecimento do notável atleta e por essa razão, a Avenida General Norton de Matos seria encurtada entre o início do IC19, em Benfica, e o acesso da Estrada da Luz. O Centro Comercial Colombo será inaugurado no dia 15 de Setembro de 1997 e também nesse mesmo ano, seria aberto ao trânsito rodoviário a Avenida Lusíada, via rápida urbana e essencial elo de ligação entre o centro da capital e a periferia. Possui acessos desnivelados, quer para a Avenida do Colégio Militar e Avenida General Norton de Matos, quer para a Estrada da Luz, Eixo Norte-Sul e Avenida dos Combatentes. Por intermédio desta artéria, acede-se directamente ao Centro Comercial Colombo e ao Estádio da Luz. A estação do Colégio Militar/Luz (Linha Azul) do Metropolitano de Lisboa construída no âmbito da expansão da rede do “Metro” à zona de Benfica entre as estações de Carnide e Alto dos Moinhos abriu ao público a 14 de Outubro de 1988 conjuntamente com as estações das Laranjeiras e Alto dos Moinhos. O projecto arquitectónico da estação foi da autoria do arquitecto António J. Mendes e está localizada na Avenida do Colégio Militar junto ao cruzamento com a Avenida Lusíada. Esta estrutura possibilita o acesso fácil ao Centro Comercial Colombo, Estádio da Luz e terminal de várias carreiras de autocarros urbanas e suburbanas. Em 1997, o Metropolitano prolongará o seu trajecto com as estações de Carnide e Pontinha e, em 2004, concluirá a Linha Azul com o troço da Pontinha, Alfornelos e a estação terminal da Amadora/Este, Falagueira.
*** O autor jamais respeitará as normas do Novo Acordo Ortográfico.
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