quinta-feira, 27 de março de 2014

“Passarinho-Moni” - O lendário passarinheiro-mor da freguesia de Benfica




Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2014)



(por Fausto Castelhano **)



Cidadão respeitadíssimo e incontornável no seio da comunidade de Benfica, Passarinho-Moni tornou-se, no transcorrer de longos anos de traquejo na sua actividade dominante, insigne mestre na arguta arte de “armar ao ramo”, método eficiente com que lograva caçar alguns pássaros silvestres bastante comuns da fauna estremenha, aves canoras de pequeno porte e que facilmente se adaptavam em ambientes de cativeiro: tentilhões e milheirinhas, verdilhões, lugres e pintassilgos, onde com mais ou menos êxito, poderiam acasalar com canários dando origem a espécies híbridas muito interessantes. 



Debulhadora/enfardadeira movida a vapor e ainda utilizada até aos anos 40/50 do século XX nas freguesias do Termo da Cidade de Lisboa (Foto Wikipédia


A arte de “armar ao ramo”, modalidade outrora bastante difundida nas freguesias do chamado Termo da cidade de Lisboa praticava-se numa época do ano bastante precisa, balizada entre o período final das colheitas de cereais cultivados na região, principalmente trigo e aveia (debulha das espigas/enfardamento da palha) e logo depois, quando caíam as primeiras chuvadas de Setembro/Outubro, ou seja, coincidindo com os trabalhos da “lavra” e a preparação dos solos agrícolas visando as sementeiras de Inverno.


A “lavra” com charrua e junta de bois na preparação dos solos para as sementeiras de Inverno, faina agrícola bastante comum até às décadas de 40/50 do século XX nas freguesias do Termo da Cidade de Lisboa
(Foto Wikipédia


O processo de “armar ao ramo” exigia quatro elementos essenciais: produto pegajoso (visco), pequeno ramo de árvore, hastes fininhas de qualquer arbusto ou caruma de pinheiro e, por fim, um pássaro cantante adequado à função de “chamariz” (tentilhão ou pintassilgo e, ainda, a milheirinha. 
Segundo os entendidos na matéria, o tentilhão e o pintassilgo eram considerados os “chamarizes” por excelência. 
Apenas eram utilizadas dois tipos de “visco” e a sua preparação requeria alguns conhecimentos técnicos sobre o assunto. Assim, recorria-se a pedaços de “sola de Ceilão” que depois de lançados num qualquer recipiente metálico e derretidos em lume brando, convertia-se numa cola bastante eficiente. A outra opção, a arjunça: substância glutinosa extraída por incisão do caule de uma conhecida variedade de cardo, o “cardo do visco” (carlinga gommifera). 
Quanto ao ramo, escolhia-se uma pequena pernada de oliveira e que seria fixada no solo e em local propicio por onde a passarada no seu esvoaçar nas suas rotas, passaria por perto… Previamente besuntadas de visco, as finas hastes seriam colocadas de forma dissimulada por entre a folhagem do ramo com uma tal perspicácia que inadvertidamente quase obrigava os passarinhos a pousar sobre as hastes aderentes.


O “cardo do visco” (carlinga gommifera), variedade de cardo onde por intermédio de incisão no caule se extrai a arjunça, substância glutinosa que se utilizava na caça aos pássaros na especialidade de “armar ao ramo”. 
(Foto Wikipédia


Então, quando a época de Estio se aproximava do fim e os jovens passarinhos saídos da última postura adquiriam total autonomia e voejavam em bando por todo o lado, também chegava o momento do infatigável Passarinho-Moni entrar em frenética actividade. 

-Tocaram o sino do portão, vai lá ver quem é… 
- É p’ra já, mãe!  
- Ah! É o Sr. António… 
- Boa tarde, o pai está?  
- Está, sim, Sr. António. Já dormiu a sesta e agora foi lá p’ra cima. Deve estar na adega ou então, foi medir o leite. O vaqueiro acabou de mungiu as vacas. Venha daí… 
- Boa tarde, Sr. Augusto. Amanhã, bastante cedinho posso “armar ao ramo”? 
- O Sr. António esteja à vontade. Venha sempre que quiser e arme o ramo onde entender.


Ramo de oliveira, visco e chamariz, ou a arte de apanhar pássaros na modalidade “armar ao ramo”
(Foto Wikipédia


A cena repetiu-se durante cerca de dezena e meia de anos. Pois bem, logo que o mês de Setembro assomava, desde o ano já longínquo de 1945 até aos finais da década de 50 do século transacto quando a Quinta do Charquinho (e tantas outras) foi desmantelada devido ao derradeiro alargamento do Cemitério de Benfica em 1959 e, também, à construção dos edifícios do actual Bairro da Quinta do Charquinho, o Sr. António, o inesquecível Passarinho-Moni surgia-nos a tocar o sino da Quinta do Charquinho. 

Passarinho-Moni montava as engenhosas, quão fatídicas armadilhas, tanto na Quinta do Sarmento (Quinta do Bom-Nome) e Quinta do Charquinho, como nas terras um pouco mais afastadas de Alfornelos ou Falagueira e ai, sim! Integrado em pleno cenário campestre, o saudoso Passarinho-Moni sentia-se absolutamente livre que nem passarinho e tornava-se verdadeiramente insuperável na original modalidade de “armar ao ramo” onde exibia em toda a plenitude, a vasta gama de segredos do “métier” e as inexcedíveis performances da sua rara e sagaz habilidade, onde avultava paciência ilimitada, a mesma pachorra incomensurável com que instruiu o meu irmão Carlos Alberto nos mecanismos de tão singular ofício.



O pintassilgo-comum ou apenas pintassilgo (Carduelis carduelis), pequena ave fringilídea, comum em toda a Europa, mais abundante nas zonas central e meridional. É uma residente habitual nas zonas temperadas, mas as populações de latitudes mais altas migram para sul durante o inverno (Wikipédia). 


As hastes embebidas em “visco” seriam assentes de modo científico no ramo de oliveira que se fixava no chão restolhado e, juntinho ao ramo, a gaiola (protegida por mero pano branco) que encobria no seu interior, um dos componentes relevantes do método de “armar ao ramo”, o “chamariz”. Depois, o passarinheiro dissimulava-se por perto e pacientemente aguardava os acontecimentos.



Verdelhão comum (Carduelis Chioris), ave fringilídea de contextura similar ao pardal comum, ave de constituição pesada, corpo compacto, cabeça grande e bico grosso de cor osso. Visto à distância parece somente verde. Visto ao perto, poderemos apreciar as suas cores bastante destacadas (Wikipédia


Decorrido breve espaço de tempo, começava o chilreio mavioso do “chamariz” que de imediato, atraía a passarada ao redor. Um pouco desconfiados, aproximavam-se do “canto de sereia” e respondiam do mesmo modo com os seus chilreios, intrigados com a cantoria d’um pássaro que nem sequer conseguiam lobrigar. 

Então, começava a dança. Revoluteavam num verdadeiro rodopio, empoleiravam-se sobre a gaiola e à volta do ramo e, quando dominadas por extrema curiosidade resolviam pousar nas hastes besuntadas de visgo, as frágeis avezinhas já não conseguiam safar-se. O namorico, instigado pelo canto sedutor do “chamariz” acabava de modo absolutamente atroz… 

Enfim, qualquer tentativa empreendida para se libertarem da ratoeira onde caíram, resultava infrutífera. Quanto mais se debatiam, mais se enrodilhavam no “visco” fatal. 
E pronto, rapidamente apanhados à mão, procedia-se sem perda de tempo, à limpeza cuidadosa das penas, patas, etc. por meio de um pequeno trapinho embebido em petróleo.



O lugre (Carduelis spinus), também conhecido pelo nome de pintassilgo-verde, é um pássaro fringilídeo extremamente acrobático, podendo ser visto muitas vezes, pendurado de cabeça para baixo, enquanto procura alimento nas árvores (Foto Wikipédia


Ao calcorrear as ruas da freguesia de Benfica, Passarinho-Moni parecia-nos que andava sempre atarefado, contudo ao atravessar a Estrada de Benfica, acalmava e nunca ousou pisar as linhas dos carros eléctricos. Prudente, apenas alargava a passada, transpunha os carris…e já está. Saltava para o passeio do lado contrário. Quem assistia, comovia-se com tal cena mas abstinha-se de pronunciar o mais leve murmúrio…



Milheirinha, chamariz, serrazina ou grazina (Serinus serinus) é um pequeno pássaro da família Fringillidae. É muito comum em toda a Europa e encontra-se em jardins, parques e matas de coníferas. A plumagem é malhada de castanho-escuro e amarelo. No Verão, o amarelo intensifica-se e a cabeça fica quase completamente amarela. 
(Foto Wikipédia


E lá ia, ensimesmado ou à conversa consigo mesmo, segurando a gaiola envolta num simples pano branco e que ocultava no seu interior o “chamariz” da sua preferência, tentilhão ou pintassilgo, um dos principais argumentos da artimanha com que almejava levar ao ludíbrio a passarada.



O tentilhão-comum (de tintim, vocativo onomástico) é um pássaro de pequeno porte, com cerca de 15 cm de envergadura da família dos Fringilídeos (Fringilla Coelebs), sedentário, de coloração bastante viva e de canto mavioso. É também denominado batachim, chincho, pincha, pintalhão pardal-de-asa-branca, pimpalhão, pardal-dos-castanheiros, chincalhão, pintarroxo e pimpim. 
(Foto Wikipédia)


Sempre que era abordado, Passarinho-Moni, mostrava-se atencioso e irradiava largo sorriso com certa semelhança ao do antigo actor e cantor francês “Fernandel”
Aceitava encomendas de pessoas amigas ou clientes ocasionais e procedia pessoalmente, às entregas dos pássaros solicitados nas moradas indicadas ou transaccionava o produto do seu intenso labor tanto nas proximidades do mercado de levante da Avenida Grão Vasco como, mais tarde e após a sua inauguração em 19 de Outubro de 1971, junto ao Mercado Municipal de Benfica. 

O inesquecível Passarinho-Moni residiu na Rua dos Arneiros (antiga Travessa dos Arneiros), 27 - 1º andar, D.to e sempre na companhia de seus extremosos pais, o Sr. Eduardo (Funcionário Administrativo no Cemitério Municipal de Benfica) e a Sr.ª D. Adelaide. 
Após o falecimento dos progenitores no início da década de 80 do século anterior, Passarinho-Moni foi recolhido por familiares com domicílio nas proximidades da Praça do Chile. Mais tarde, afectado por problemas de saúde, seria internado numa Casa de Saúde na freguesia de Caneças. 
Por fim e nos finais dos anos 80 do século XX, o cidadão António, o renomado o Passarinho-Moni, retirou-se do nosso convívio tendo sido sepultado no Cemitério de Caneças.



Prédio onde residiu o Sr. António “Passarinheiro”, vulgo Passarinho-Moni, Rua dos Arneiros (antiga Travessa dos Arneiros, 27 - 1ºandar / D.to, freguesia de Benfica. 
(Foto do Arquivo de Fausto Castelhano) 


Entretanto, a arte de “armar ao ramo” desapareceu do panorama territorial das chamadas freguesias do “Termo da cidade de Lisboa” após a demolição das inúmeras e belas herdades de rendimento e lazer ocorridas nas décadas de 40/60 do século transacto e que, avidamente foram devoradas pela gula insaciável da massiva, quão brutal expansão urbanística que tudo abocanhou sem apelo nem agravo. 
Todavia, o célebre “Passarinho Moni” permanecerá para sempre no imaginário colectivo da população local tendo deixado uma imensa e terna saudade em todos quantos tiveram o privilégio de conhecer o expoente máximo dos passarinheiros da freguesia de Benfica e arredores. 






** O autor não respeita as normas do Novo Acordo Ortográfico









3 comentários:

Porto Santo disse...

Sempre excelente os textos do nosso amigo Fausto...

J A disse...

Esta personagem estava nos arquivos do esquecimento mas voltou à memória....e bem !!

Anónimo disse...

Penso que não iria deixar este mundo sem evocar o amigo Passarinho Moni com o devido destaque que merecia...(Fausto Castelhano)