Capítulo I - No rasto do “Bonifácio”
(por Fausto Castelhano)
Rememorar um passado já distante, quer por motu próprio, quer incitado persistentemente por familiares e amigos, tem-se revelado um exercício algo complexo mas, ao mesmo tempo, fascinante e que, hoje em dia, consegue absorver de modo constante todos os meus pensamentos mais remotos.
A enxurrada tornou-se imparável e, sejam episódios interessantes ou menos agradáveis que aconteceram há muitíssimos anos, sejam pessoas ou lugares que conhecemos ao longo da nossa vivência vão, entretanto, emergindo à tona, absolutamente límpidos e recheados dos mínimos contornos e onde, só aparentemente, tais ocorrências já se encontrariam muito bem arrumadinhas nos esconsos mais fundos da memória…
António de Almeida Castelhano, tal como vinha retratado nas páginas do "Diário de Notícias" no dia 19 de Maio de 1939.
(Fotografia cedida gentilmente por Maria Teresa Vilanova Castelhano)
Assim sendo, incontáveis acontecimentos de outrora saltam cá p’ra fora, galgam um ror de anos como se tivessem acontecido ontem e, no entanto, começamos a recear que a estafante corrida de fundo que resolvemos encetar com cerrado denodo, poderá ficar bastante aquém dos objectivos que pretendíamos alcançar… seja por absoluta escassez de tempo ou falta de fôlego, seja por inopinado falhanço das faculdades mentais.
Quinta de Montalegre, 1936 - Os irmãos Maria Helena, Maria Manuela, António e Lucialina (filhos de Augusto Castelhano e Aurora Mendes de Almeida) fotografados junto ao tanque de rega da horta localizada próximo da entrada da Rua dos Soeiros. Todos assistiram à chegada do “Bonifácio”.
(Fotografia de Fausto Castelhano)
O lamiré surgiu por fortuito acaso quando uma velha e amarelecida foto me caiu de chapuz no regaço lançada por mão generosa de um familiar próximo: a sobrinha Maria Teresa Vilanova Castelhano.
A imagem reflectia o rosto de um jovem simpático e sorridente, mas que, e até àquele preciso instante, desconhecia em absoluto.
Rabiscado a lápis nas costas da fotografia, apenas a data sumida do ano de 1940 contudo, logo de seguida, e soprado ao ouvido, o fulcral esclarecimento: - “É o retrato do António, o meu falecido pai, quando o “Bonifácio” aterrou na cidade de Lisboa, precisamente na Quinta de Montalegre. A cena passou-se há uma porradaria de anos, ainda no tempo da Grande Guerra. Gostaria de obter o recorte do jornal“.
E pronto, foi tudo…
Afinal, tratava-se de António Castelhano, o primogénito do casal Augusto Castelhano e Aurora de Almeida, protagonista de um caso memorável que já ouvira descrever, vezes sem conto, desde a mais tenra meninice, e onde a narração dos mais ínfimos pormenores a respeito do singular quanto empolgante assunto tinham o condão particular de desafiar a minha imaginação.
Lucialina Castelhano e a cunhada Ivone em 1944 posam na famosa Cascata Monumental da Quinta de Montalegre. Duas das testemunhas que presenciaram a chegada do “Bonifácio”.
(Fotografia de Fausto Castelhano)
E segundo rezam as crónicas de antanho, contadas de geração em geração por quem teve o feliz ensejo de presenciar tal façanha, o desempenho do principal actor, embora acossado por aguerrida legião de comparsas a roer-lhe a pontinha dos calcanhares, pautou-se por uma actuação verdadeiramente notável e obtendo, no final da incrível odisseia, rotundo sucesso a todos os níveis.
A Cascata Monumental da Quinta de Montalegre, 1944 – Joaquim Monteiro, Lucialina Castelhano e a cunhada Ivone. Testemunharam a chegada do “Bonifácio” no dia 18 de Junho de 1939.
(Fotografia de Fausto Castelhano)
Pois bem, chegou a hora de exumar tão curiosa história que sacudiu intensamente a região de Lisboa e agitou, durante semanas a fio, a população portuguesa em geral e que, graças à divulgação massiva nas páginas do "Diário de Notícias" da época, acabou por alcançar enormíssima e inusitada repercussão a nível nacional: o “Bonifácio”!
Assim, após marcação a título de urgência aos arquivos do Diário de Notícias na tentativa exaltante que nos conduzisse a qualquer rasto palpável do aludido “Bonifácio”, arrancámos na companhia da Lídia Maria e fomos direitinhos ao edifício/sede da Avenida da Liberdade, junto à Praça Marquês de Pombal.
À hora fixada e após verificação de identidades descemos, por fim, às catacumbas, isto é, a cave onde se encontra o valioso arquivo das edições publicadas pelo prestigiado jornal e que permanecem bem resguardadas mercê de adequados requisitos de preservação.
A referência à data de 1940 inscrita na fotografia, um pormenor da maior valia, serviu-nos de ponto de partida nas demoradas e duras diligências a que deitámos mão. Não obstante, embora acalentados por um sentimento de muita e fagueira esperança, as buscas ao ano de 1940 resultaram infrutíferas em toda a linha e o mesmo sucedeu na pesquisa desesperada às publicações dos anos subsequentes até 1945, isto é, ao final da 2ª Guerra Mundial.
A decepção em torno do fragoroso insucesso invadiu-nos a alma de alto-a-baixo… Assim, fomos confrontados com duas hipóteses a ponderar: rever a totalidade do material já esquadrinhado ou então, a informação quanto ao provável ano de 1940 não correspondia à realidade, isto é, à data dos factos.
Edifício/sede do Diário de Notícias localizado na Avenida da Liberdade junto à Praça Marquês de Pombal, em Lisboa. O projecto é da autoria do arquitecto Pardal Monteiro e foi inaugurado a 25 de Abril de 1940. Em 29/12/1864 seria publicado o primeiro número e cujo preço de capa era de 10 réis.
(Fotografia in Wikipédia)
Apesar do contratempo, ainda nos restava uma ténue esperança: o ano de 1939 coincidia, também, a períodos de guerra, seja ao termo da Guerra Civil de Espanha em 1 de Abril de 1939, seja ao começo oficial da 2ª Guerra Mundial, que corresponde ao dia 1 de Setembro de 1939, quando as tropas hitlerianas transpuseram as fronteiras da Polónia.
Enfim, retomámos a procura do fugidio “Bonifácio”, examinando à lupa as páginas dos jornais referentes ao ano de 1939 e, de repente, um grito da Lídia Maria ecoou pelas paredes altas do arquivo do Dário de Notícias: - “O Bonifácio está aqui”!
Recorte do Diário de Notícias do dia 19 de Junho de 1939 relatando a descida do “Bonifácio” ocorrido na véspera na zona da Luz (Carnide/Benfica), um grande acontecimento popular.
(Fotografia de Fausto Castelhano, in Diário de Notícias)
Debruçámo-nos, avidamente, sobre a primeira página da velhinha edição do "Diário de Notícias" do dia 19 de Junho de 1939, visado pela odiosa Comissão de Censura, e nem queríamos acreditar: acertámos em cheio no alvo… Precisamente no intervalo entre duas mortíferas guerras e na transição da Primavera para a época de Verão.
Então, entre o noticiário de véspera e versando temas sem qualquer relevância especial, seja o baptismo de três barcos lançados à água e destinados à famigerada Brigada Naval da Legião Portuguesa ou o festivo encerramento do Ano Escolar no Instituto de Odivelas, seja o primeiro dia de viagem às Colónias Ultramarinas do Sr. Presidente da República, Óscar Fragoso Carmona ou a cerimónia do Juramento de Bandeira realizadas em Lisboa e na Província, a principal notícia do reputado matutino e completada por três sugestivas fotografias relativas ao inédito acontecimento, sobressaía em letra de forma e rezava assim:
“UM GRANDE ACONTECIMENTO POPULAR”
“BONIFÁCIO” desceu na Luz
“MILHARES E MILHARES DE PESSOAS ACLAMARAM-NO”
Quinta de Montalegre, 1937 - Os amigos de António Castelhano e que presenciaram a chegada do Bonifácio à Quinta de Montalegre. No primeiro plano e a contar da direita, Josué baptista (segundo) e António Castelhano (terceiro).
(Fotografia de Fausto Castelhano)
Sofregamente, consultámos as edições anteriores e posteriores a 19 de Junho de 1939, tomando notas, fotografando inúmeras imagens e textos. Solicitámos fotocópias aos serviços do Arquivo que, em boa hora, nos facultaram a consulta ao riquíssimo espólio que o "Diário de Notícias" mantém à sua guarda.
Enfim, abalámos radiantes e a forte convicção da missão cumprida…
Zéfiro, o Deus do vento Oeste na mitologia grega. Um dos deuses que provocou a alteração da rota do “Bonifácio”.
(Pintura de William-Adolphe Bouguereau, 1875, in Wikipédia)
Ora, chegados aqui, impunha-se a pergunta: - “Bonifácio”? Afinal de contas, será que alguém se recorda ou ouviu mencionar tão insigne individualidade? Certamente que não…
Além de alguns familiares de António Castelhano e que assistiram, in loco, à insólita chegada do enigmático “Bonifácio”, as irmãs Lucialina (recentemente falecida) e Maria Manuela, apenas nos resta o nosso amigo António Russo, o antigo e dedicado trabalhador rural da Quinta de Montalegre.
Seguramente é possível que alguns cidadãos anónimos, mormente residentes ou naturais das freguesias de Benfica e Carnide tenham retido na memória uma ténue lembrançazinha a propósito de tão extraordinário evento ocorrido nos finais da década de 30 do século transacto e que, pouco a pouco, se dissipou na poeira do tempo.
E, no entanto, a derradeira acção da curiosa história e que tanto brado provocou em todos os extractos da população da cidade de Lisboa desenrolou-se, exactamente aqui, na Freguesia de Benfica, paredes-meias com a vizinha Freguesia de Carnide…
Como assim? Ora, perante a desbragada propaganda e os frenéticos preparativos da faustosa solenidade, aquando da recepção em honra do ignoto “Bonifácio”, os Deuses do Universo insurgiram-se e não perderam a soberana ocasião.
Conjugando os seus imensos poderes, Zéfiro, o Deus do vento Oeste e Bóreas, o Deus do vento Norte, predominantes na região, avançam com uma partidinha recheada de safadezas visando ofuscar todo o cerimonial tão minuciosamente preparado pelos organizadores da festança…
Bóreas, o Deus do vento Norte na mitologia grega, um dos deuses que participou na alteração da trajectória do “Bonifácio”.
(Fotografia in Wikipédia)
Assim, tal sucedeu e, no momento exacto, introduziram um simples pauzinho na engrenagem que influenciou, de modo categórico, a delineada trajectória aérea do já célebre “Bonifácio”, cuja magna aparição apontava para o espaçoso palco da Avenida da Liberdade, entre a Praça dos Restauradores e o Parque Eduardo VII, onde uma imensa multidão aguardava impaciente, ruidosa e em delírio, a sua chegada triunfal.
Vamos, então, regredir cerca de sete décadas e meia, à tarde amena do distante dia 18 de Junho de 1939 e narrar com máximos detalhes, a sequência dos factos até atingir o acto culminante num cenário verdadeiramente campestre e imprevisível, isto é, quando o tão desejado Bonifácio” desceu suavemente dos céus envolto numa aura de mistério e aterrou incólume na luxuriante seara de trigo da Quinta de Montalegre… sem o estralejar de foguetório ou acordes de banda de música…
[Continua…]
*** O autor não respeita as normas do Novo Acordo Ortográfico
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