Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2010)
Antigos caminhos da Freguesia de Benfica
(por Fausto Castelhano)
Espero que estes pequenos e modestos apontamentos sobre as Azinhagas da Freguesia de Benfica, sejam mais um contributo para um melhor e mais aprofundado conhecimento de toda a área territorial da nossa terra, especialmente, aos nossos amigos que, por mero acaso, sempre viveram nas zonas urbanas da freguesia.
Provavelmente, para muitos amigos, será uma verdadeira novidade a existência destes itinerários que, em épocas longínquas, foram vias de primordial importância no desenvolvimento duma região tradicionalmente rural e, cuja base económica assentava, essencialmente, na produção agrícola, hortícola e leiteira.
Calcorreei, vezes sem conta, todas estas Azinhagas, nomeadamente, a Estrada do Poço do Chão e a Azinhaga da Fonte. Apesar das profundas alterações urbanísticas acontecidas na nossa freguesia (e em todas as outras), a toponímia de alguns destes trajectos (muito antigos) manteve-se, afortunadamente, até aos dias de hoje afora, uma ou outra alteração. Foi com um misto de curiosidade, emoção e muito saudade que encetei (e a Lídia Maria, minha mulher) esta verdadeira peregrinação a sítios tão pitorescos e verdadeiramente fabulosos de outrora.
Estou em crer que, o esforço despendido na longa e extenuante caminhada de retorno ao passado, valeu bem a pena e acima de tudo, causou-nos um inolvidável prazer…
A palavra Azinhaga deriva do árabe az-zinaigâ ou azzanaka que significa “rua estreita”, ou “caminho estreito” entre propriedades rústicas que, dum modo geral, estavam ladeadas por muros ou valados altos.
1962 - Caminho de acesso à Quinta das Pedralvas.
Tinha início junto ao nº 702-A da Estrada de Benfica e terminava na Calçada do Tojal
Foto de Artur Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Tinha início junto ao nº 702-A da Estrada de Benfica e terminava na Calçada do Tojal
Foto de Artur Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Em muitos e variados sítios, os muros e os valados que demarcavam as herdades ou as quintas dos subúrbios das povoações, cumpriam duas funções específicas: serviam de delimitação e protecção desses espaços, mas também, as pedras que os constituíam eram as que, de certo modo, obstruíam os terrenos agrícolas e que dificultavam bastante o seu amanho em boas condições.
Na nossa vizinha Freguesia de Carnide, as azinhagas existiam em elevado número já que, parte considerável da superfície da freguesia era absorvida por quintas e explorações agrícolas de consideráveis dimensões.
Porém, com as características de azinhaga, em toda a sua extensão ou em parte existiam, na Freguesia de Benfica (uma das freguesias do Termo de Lisboa), apenas cinco vias (se considerarmos a Rua dos Soeiros e a Azinhaga do Ramalho como partes integrantes da Freguesia de Benfica) dignas desse registo e uma travessa que dava acesso exclusivo à Quinta da Granja de Cima que, também, podia ser considerada como uma verdadeira azinhaga.
Muito recentemente, e numa sentida romagem de saudade, percorri (e a Lídia Maria) esses antigos caminhos em busca do que delas restava. Percorremos muitos quilómetros, a “butes”, (continuamos incorrigíveis andarilhos) desde as Pedralvas (cuja antiga rua não deixou vestígios), a Estrada do Poço do Chão, a Azinhaga da Fonte, a Rua dos Soeiros, a Azinhaga do Ramalho e a Travessa da Granja.
Felizmente, o esforço dispendido na longa jornada compensou-nos, fartamente, naquilo que pretendíamos obter, mas só assim, é possível desenvolver um trabalho rigoroso e que mereça a pena ser incluído no nosso BLOG.
O registo do meu imaginário continua a não me trair e, exactamente nos sítios previamente seleccionados encontrámos, quase por milagre, alguns troços dessas antigas vias que, apesar da tremenda, desordenada e criminosa destruição, vão conservando a antiga toponímia. Assim, não perdemos a grande oportunidade que se nos deparou perante os nossos olhos e, como é óbvio, obtivemos os respectivos registos fotográficos. Então, aí vai:
Esta rua (com todas as características de azinhaga), começava junto ao nº 702-A da Estrada de Benfica e terminava na Calçada do Tojal.
Este itinerário dava acesso directo à Quinta das Pedralvas, local muito procurado na primeira metade do século XX pelos amantes das lautas e saborosas petiscadas e onde, no seu afamado “Retiro”, se “batia o Fado” em grande estilo até às tantas da matina, pedindo meças ao “Bacalhau”, ao “Caliça”, ao “Ferro de Engomar” ou ao “Charquinho”, e este era, sem dúvida, o mais requintado de todos eles…
Mais tarde e num dos seus edifícios, na transição das décadas de 50 para 60 do século passado, o Sport Lisboa e Benfica, no tempo do grande treinador Otto Glória, instalou o “Lar do Jogador”, não só como local de concentração antes dos jogos de futebol, mas também, de acolhimento aos jogadores solteiros.
Nos anos 60 do século XX e com a expansão urbanística operada na Freguesia de Benfica, a pitoresca Quinta das Pedralvas (e muitas outras que tornavam a Freguesia de Benfica única no seu género), foi totalmente destruída e, no seu lugar, nasceu um aglomerado de incaracterísticos edifícios o qual, crismaram de “Urbanização das Pedralvas”.
Numa primeira fase, um bairro de Habitação Social da Câmara Municipal de Lisboa e, depois, implantaram inúmeras habitações convencionais de avantajado porte.
A Estrada do Poço do Chão (piso em “macadame” e, só mais tarde, o asfalto tomou o seu lugar) constituía a principal via de comunicação no trajecto (na direcção norte), de Benfica até Carnide e, dai, até Telheiras, Paço do Lumiar, Pontinha, Paiã, etc.
Tinha o seu começo no Largo da Cruz da Hera (em Benfica) e terminava na Estrada da Correia, já na vizinha Freguesia de Carnide. Os números de 1 a 127 pertenciam a Benfica; os números pares e ímpares desde o nº 129, pertenciam a Carnide.
A divisória das duas freguesias fazia-se através da ribeira que atravessava a Quinta do Sarmento ou Quinta do Bom-Nome.
O muro da Quinta do Conde de Carnide (à direita), à esquerda, o valado da Quinta do Charquinho e ao fundo (à esquerda) a estrutura metálica do moinho de vento de um dos poços de água existentes na Quinta do Bom-Nome
Foto de João H. Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Muitíssimo utilizada no transporte de mercadorias, produtos agrícolas e hortícolas das diversas explorações agrícolas de toda a vasta área em redor, mas também, pelos vários habitantes de Carnide, Pontinha, etc. (que a percorriam a pé) e que trabalhavam nalgumas empresas de Benfica (a Fábrica Simões, a Metalúrgica de Benfica) ou da Venda Nova (a CEL-CAT, a Fábrica de Borracha BIS, a Sorefame, a Cometna, Laboratórios Victória, etc.); as jovens dos Laboratórios ATRAL (na Avenida Gomes Pereira), etc.
A Estrada do Poço do Chão só adquiria as características de azinhaga, um pouco mais à frente do cruzamento com a Estrada dos Arneiros. Então, lá estavam os muros das Quintas da Granja de Cima e do Conde de Carnide (do lado direito), os valados da Quinta do Charquinho (com entrada pela Estrada dos Arneiros, nº 4) e o muro da Quinta do Sarmento (ou do Bom-Nome) no lado esquerdo.
Assim, um pouco depois do seu início e até ao cruzamento já mencionado (no sentido de Carnide) existiam, do lado direito, muros ao longo de todo o trajecto (Quintas da Granja de Cima e do Conde de Carnide) todavia, do lado esquerdo, a Estrada do Poço do Chão era ladeada por bastantes habitações, moradias ou casas apalaçadas, mas também, pela Quinta das Palmeiras, nº 63 e pelo muro da Quinta do Brito ou Quinta do Zé Brito (com entrada pala Travessa dos Arneiros, nº 28).
A Estrada do Poço do Chão era o caminho, por excelência, utilizado pelos moradores de Benfica (e de outros lugares) nas verdadeiras romarias para a famosa Feira da Luz, em todo o mês de Setembro. Durante esse período, especialmente nos fins-de-semana, o corrupio da população, ao longo desta via, transformava-se num inolvidável espectáculo de alegria e boa disposição…E se o caminho era longo…e penoso!
A festa, garanto, era de arromba… A feira dos barros, do bom vinho a copo ou a canjirão, do saboroso melão de Almeirim, das iscas, das bifanas e da bela sardinha assada (a saltar na brasa), do carrossel e dos cavalinhos (um encantamento irresistível de miúdos e graúdos), a “visita da ordem” à vaca leiteira (uma atracção). Aí, o taberneiro agachava-se e, das tetas do bicho, esguichava a boa vinhaça, branco ou tinto…Copos de 2 ou de 3 mas… sempre um negócio de estucha…Que maravilha!
Como era da praxe, no ansiado dia da procissão da Nossa Senhora da Luz (com acompanhamento de banda de música a condizer), era o delírio de toda a multidão que ali acorria aos tradicionais festejos da Senhora da Luz, a Santa da sua devoção e cujo culto, data de 1463…
O cortejo, com todo o seu deslumbrante aparato, assomava pela grande porta do templo e, logo, derramava-se pelo terreiro. O prior, austero e muito compenetrado do seu importante papel naquele cenário fascinante, seguia debaixo do palio, o Santíssimo Sacramento nos gadanhos, mas disfarçadamente, e pelo cantinho do olho de águia, topava tudo o que se passava ao seu redor…Era, apenas, o controlo do rebanho…Pois é, fia-te na Virgem e…não corras!
As Irmandades, no seu passinho ritmado, arvoravam as flâmulas ricamente bordadas; os anjinhos, completamente estafados pela caminhada; o andor da Senhora da Luz (a grande protagonista da festa) assentava nos ombros de meia dúzia de musculados crentes que se prontificavam ao sacrifício…Um mar de gente transbordava pelo Largo da Luz e pela Rua da Fonte.
As janelas e os varandins das casas por onde o cortejo desfilava, apresentavam-se debruadas com as melhores e mais vistosas colchas, rivalizando em saudável compita…Era o povo na sua mais genuína dimensão…Depois, a banda de música irrompia com os acordes apropriados ao cerimonial…
Na cauda do pomposo cortejo, irmanados num entusiasmo sem limites, o povo…O bom povo, enquadrados por numerosos acólitos de opas vermelhas…Os crentes, respeitadores e carregadinhos de fé dedilhavam as contas dos terços ou dos rosários, remoendo preces e ladainhas; outros, sempre na galhofa, gozavam o prato…É assim e não há nada a fazer!... Cada qual, come daquilo que gosta!
Após a costumeira voltinha, o populacho entrava de cambulhada no interior da velha Igreja da Luz… À cata dos melhores lugares… a mostrar-se: “Sr. Prior, estou aqui”!
Chegara a hora do sermão e, como sempre, da boquinha santa do orador, os apaniguados da Santa Madre Igreja Católica e Romana, só esperavam “coisa fina” e que lhes enchesse a alma de muita fé e esperança no futuro…”Cumpram a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo pois, só assim, ganharão o Reino dos Céus"… Entre dentes, iam murmurando: “Sim senhor, bonito sermão”!
Depois, era a debandada geral, o destroçar p´rá rambóia. A festa ia continuar em plena Feira da Luz, numa indescritível barafunda de pregões, algazarra, música, berros…Porém, quando o cansaço os começasse a derrubar, era o regresso a casa, o levantar do arraial…O povoléu punha-se nos “calcantes” e então, pela Estrada do Paço do Lumiar, Estrada de Telheiras, Azinhaga da Fonte e Estrada do Poço do Chão, eles vinham aos magotes, devagar, foliando, derreados de tamanha farra… A chinfrineira das cornetas e dos apitos de barro da garotada, os mais pequenitos às cavalitas, choramingando, as mulheres com carregos de toda a ordem e os homens…atordoados…já com um grãozinho na asa… A caminhada seria longa, extenuante, dura…
P’ró ano, se Deus os protegesse, o maralhal lá estaria… a repetir a dose… Bons tempos!
Com as profundas alterações urbanísticas ocorridas na Freguesia de Benfica no alvorecer da década de 60 do século XX, o aumento da população residente e o progressivo aumento do trânsito rodoviário, tornava-se necessário romper com uma via alternativa para norte e que resolvesse, de modo consequente, estas prementes questões.
Assim, em 23 de Agosto de 1967, na presença de França Borges (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa) e de outras destacadas individualidades, foi inaugurada uma nova avenida, a Avenida do Uruguai que, prolongando-se a partir do final da Avenida Gomes Pereira termina nos últimos prédios desta nova via. A partir daí, tomou o nome de Avenida Marechal Teixeira Rebelo e, então sim, ruma na direcção de Carnide e a outros povoados circundantes localizados a norte da Freguesia de Benfica.
E, agora, voltamos à nossa venerável Estrada do Poço do Chão… Assim, como já se referiu anteriormente, um pouco antes da visita ao Largo da Luz, da procissão e da feira, a Estrada do Poço do Chão desembocava na Estrada da Correia (já na Freguesia de Carnide) e terminava, do lado esquerdo, com o palacete da Quinta do Bom-Nome (ou do Sarmento) e, do lado direito, com o muro da Quinta do Conde de Carnide.
O traçado da actual Rua da República da Bolívia corresponde, sem alterações de monta, ao da vetusta Estrada do Poço do Chão. Isto é, até onde a nova via termina e que, através da existência de uma rotunda, tem acesso à Avenida do Uruguai e, também, à Avenida General Teixeira Rebelo e à Estrada dos Arneiros e ao Bairro da Quinta do Charquinho.
Assim, a partir do final da Rua da República da Bolívia tornava-se, sem dúvida, uma incógnita.
No final desta primeira investida, mas possuídos de uma enorme esperança nos objectivos a que nos abalançámos, recebemos a devida recompensa pelo nosso empenho e persistência. Para nós, foi com uma ilimitada emoção, surpresa e felicidade, a descoberta das placas toponímicas daqueles caminhos tão antigos, mas carregados de gratas recordações.
Actualmente, da antiga Estrada do Poço do Chão, apenas existem 2 reduzidos troços (ambos com cerca de 250 metros). Um deles, já na Freguesia de Carnide, constitui o último trecho da Estrada do Poço do Chão e tem o seu termo no mesmo local de sempre. Entalado entre o palacete da Quinta do Bom-Nome ou do Sarmento e o chamado “Bairro Novo de Carnide” (construído pela EPUL), isto é, no cruzamento com a Estrada da Correia. Uma das placas está fixada no palacete da Quinta do Bom Nome (hoje ocupado pelo ISLA – Instituto Superior de Línguas e Administração) e a outra, num dos prédios do Bairro Novo de Carnide.
O outro troço localiza-se no prolongamento da Rua da República da Bolívia (e está devidamente sinalizado) e, depois de transpor um pequeno túnel sob um prédio, encontra-se apertado entre os prédios do Bairro da Quinta do Charquinho, do lado esquerdo e, do lado direito, pelos armazéns dos Móveis do Norte e as instalações da Associação de Solidariedade Social “O Companheiro”. E, aqui, o que resta da Estrada do Poço do Chão, termina num matagal.
E pronto! A primeira etapa desta jornada está completada. Daqui, vamos arrancar até ao nosso próximo alvo: Azinhaga da Fonte!
Continua…
Fausto Castelhano
Na nossa vizinha Freguesia de Carnide, as azinhagas existiam em elevado número já que, parte considerável da superfície da freguesia era absorvida por quintas e explorações agrícolas de consideráveis dimensões.
Porém, com as características de azinhaga, em toda a sua extensão ou em parte existiam, na Freguesia de Benfica (uma das freguesias do Termo de Lisboa), apenas cinco vias (se considerarmos a Rua dos Soeiros e a Azinhaga do Ramalho como partes integrantes da Freguesia de Benfica) dignas desse registo e uma travessa que dava acesso exclusivo à Quinta da Granja de Cima que, também, podia ser considerada como uma verdadeira azinhaga.
1969 - Estrada do Poço do Chão
O muro da Quinta do Conde de Carnide e o valado da Quinta do Charquinho
João H. Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
O muro da Quinta do Conde de Carnide e o valado da Quinta do Charquinho
João H. Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Muito recentemente, e numa sentida romagem de saudade, percorri (e a Lídia Maria) esses antigos caminhos em busca do que delas restava. Percorremos muitos quilómetros, a “butes”, (continuamos incorrigíveis andarilhos) desde as Pedralvas (cuja antiga rua não deixou vestígios), a Estrada do Poço do Chão, a Azinhaga da Fonte, a Rua dos Soeiros, a Azinhaga do Ramalho e a Travessa da Granja.
Felizmente, o esforço dispendido na longa jornada compensou-nos, fartamente, naquilo que pretendíamos obter, mas só assim, é possível desenvolver um trabalho rigoroso e que mereça a pena ser incluído no nosso BLOG.
O registo do meu imaginário continua a não me trair e, exactamente nos sítios previamente seleccionados encontrámos, quase por milagre, alguns troços dessas antigas vias que, apesar da tremenda, desordenada e criminosa destruição, vão conservando a antiga toponímia. Assim, não perdemos a grande oportunidade que se nos deparou perante os nossos olhos e, como é óbvio, obtivemos os respectivos registos fotográficos. Então, aí vai:
Rua das Pedralvas
Esta rua (com todas as características de azinhaga), começava junto ao nº 702-A da Estrada de Benfica e terminava na Calçada do Tojal.
Este itinerário dava acesso directo à Quinta das Pedralvas, local muito procurado na primeira metade do século XX pelos amantes das lautas e saborosas petiscadas e onde, no seu afamado “Retiro”, se “batia o Fado” em grande estilo até às tantas da matina, pedindo meças ao “Bacalhau”, ao “Caliça”, ao “Ferro de Engomar” ou ao “Charquinho”, e este era, sem dúvida, o mais requintado de todos eles…
Mais tarde e num dos seus edifícios, na transição das décadas de 50 para 60 do século passado, o Sport Lisboa e Benfica, no tempo do grande treinador Otto Glória, instalou o “Lar do Jogador”, não só como local de concentração antes dos jogos de futebol, mas também, de acolhimento aos jogadores solteiros.
Nos anos 60 do século XX e com a expansão urbanística operada na Freguesia de Benfica, a pitoresca Quinta das Pedralvas (e muitas outras que tornavam a Freguesia de Benfica única no seu género), foi totalmente destruída e, no seu lugar, nasceu um aglomerado de incaracterísticos edifícios o qual, crismaram de “Urbanização das Pedralvas”.
Numa primeira fase, um bairro de Habitação Social da Câmara Municipal de Lisboa e, depois, implantaram inúmeras habitações convencionais de avantajado porte.
Estrada do Poço do Chão
A Estrada do Poço do Chão (piso em “macadame” e, só mais tarde, o asfalto tomou o seu lugar) constituía a principal via de comunicação no trajecto (na direcção norte), de Benfica até Carnide e, dai, até Telheiras, Paço do Lumiar, Pontinha, Paiã, etc.
1970 – Aqui começava a Estrada do Poço do Chão, frente ao Ferro-Velho (Travessa do Açougue, 9) e no entroncamento desta travessa com o Largo da Cruz da Hera (à direita)
Arnaldo Madureira, in Arquivo Municipal de Lisboa
Arnaldo Madureira, in Arquivo Municipal de Lisboa
Tinha o seu começo no Largo da Cruz da Hera (em Benfica) e terminava na Estrada da Correia, já na vizinha Freguesia de Carnide. Os números de 1 a 127 pertenciam a Benfica; os números pares e ímpares desde o nº 129, pertenciam a Carnide.
A divisória das duas freguesias fazia-se através da ribeira que atravessava a Quinta do Sarmento ou Quinta do Bom-Nome.
O muro da Quinta do Conde de Carnide (à direita), à esquerda, o valado da Quinta do Charquinho e ao fundo (à esquerda) a estrutura metálica do moinho de vento de um dos poços de água existentes na Quinta do Bom-Nome
Foto de João H. Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Muitíssimo utilizada no transporte de mercadorias, produtos agrícolas e hortícolas das diversas explorações agrícolas de toda a vasta área em redor, mas também, pelos vários habitantes de Carnide, Pontinha, etc. (que a percorriam a pé) e que trabalhavam nalgumas empresas de Benfica (a Fábrica Simões, a Metalúrgica de Benfica) ou da Venda Nova (a CEL-CAT, a Fábrica de Borracha BIS, a Sorefame, a Cometna, Laboratórios Victória, etc.); as jovens dos Laboratórios ATRAL (na Avenida Gomes Pereira), etc.
A Estrada do Poço do Chão só adquiria as características de azinhaga, um pouco mais à frente do cruzamento com a Estrada dos Arneiros. Então, lá estavam os muros das Quintas da Granja de Cima e do Conde de Carnide (do lado direito), os valados da Quinta do Charquinho (com entrada pela Estrada dos Arneiros, nº 4) e o muro da Quinta do Sarmento (ou do Bom-Nome) no lado esquerdo.
1966 - Estrada do Poço do Chão, 35
Casa apalaçada onde morava o Sr. Ludgero Alvarez
Foto de Artur Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Casa apalaçada onde morava o Sr. Ludgero Alvarez
Foto de Artur Goulart, in Arquivo Municipal de Lisboa
Assim, um pouco depois do seu início e até ao cruzamento já mencionado (no sentido de Carnide) existiam, do lado direito, muros ao longo de todo o trajecto (Quintas da Granja de Cima e do Conde de Carnide) todavia, do lado esquerdo, a Estrada do Poço do Chão era ladeada por bastantes habitações, moradias ou casas apalaçadas, mas também, pela Quinta das Palmeiras, nº 63 e pelo muro da Quinta do Brito ou Quinta do Zé Brito (com entrada pala Travessa dos Arneiros, nº 28).
A Estrada do Poço do Chão era o caminho, por excelência, utilizado pelos moradores de Benfica (e de outros lugares) nas verdadeiras romarias para a famosa Feira da Luz, em todo o mês de Setembro. Durante esse período, especialmente nos fins-de-semana, o corrupio da população, ao longo desta via, transformava-se num inolvidável espectáculo de alegria e boa disposição…E se o caminho era longo…e penoso!
A festa, garanto, era de arromba… A feira dos barros, do bom vinho a copo ou a canjirão, do saboroso melão de Almeirim, das iscas, das bifanas e da bela sardinha assada (a saltar na brasa), do carrossel e dos cavalinhos (um encantamento irresistível de miúdos e graúdos), a “visita da ordem” à vaca leiteira (uma atracção). Aí, o taberneiro agachava-se e, das tetas do bicho, esguichava a boa vinhaça, branco ou tinto…Copos de 2 ou de 3 mas… sempre um negócio de estucha…Que maravilha!
Como era da praxe, no ansiado dia da procissão da Nossa Senhora da Luz (com acompanhamento de banda de música a condizer), era o delírio de toda a multidão que ali acorria aos tradicionais festejos da Senhora da Luz, a Santa da sua devoção e cujo culto, data de 1463…
O cortejo, com todo o seu deslumbrante aparato, assomava pela grande porta do templo e, logo, derramava-se pelo terreiro. O prior, austero e muito compenetrado do seu importante papel naquele cenário fascinante, seguia debaixo do palio, o Santíssimo Sacramento nos gadanhos, mas disfarçadamente, e pelo cantinho do olho de águia, topava tudo o que se passava ao seu redor…Era, apenas, o controlo do rebanho…Pois é, fia-te na Virgem e…não corras!
As Irmandades, no seu passinho ritmado, arvoravam as flâmulas ricamente bordadas; os anjinhos, completamente estafados pela caminhada; o andor da Senhora da Luz (a grande protagonista da festa) assentava nos ombros de meia dúzia de musculados crentes que se prontificavam ao sacrifício…Um mar de gente transbordava pelo Largo da Luz e pela Rua da Fonte.
As janelas e os varandins das casas por onde o cortejo desfilava, apresentavam-se debruadas com as melhores e mais vistosas colchas, rivalizando em saudável compita…Era o povo na sua mais genuína dimensão…Depois, a banda de música irrompia com os acordes apropriados ao cerimonial…
Na cauda do pomposo cortejo, irmanados num entusiasmo sem limites, o povo…O bom povo, enquadrados por numerosos acólitos de opas vermelhas…Os crentes, respeitadores e carregadinhos de fé dedilhavam as contas dos terços ou dos rosários, remoendo preces e ladainhas; outros, sempre na galhofa, gozavam o prato…É assim e não há nada a fazer!... Cada qual, come daquilo que gosta!
Após a costumeira voltinha, o populacho entrava de cambulhada no interior da velha Igreja da Luz… À cata dos melhores lugares… a mostrar-se: “Sr. Prior, estou aqui”!
Chegara a hora do sermão e, como sempre, da boquinha santa do orador, os apaniguados da Santa Madre Igreja Católica e Romana, só esperavam “coisa fina” e que lhes enchesse a alma de muita fé e esperança no futuro…”Cumpram a palavra de Nosso Senhor Jesus Cristo pois, só assim, ganharão o Reino dos Céus"… Entre dentes, iam murmurando: “Sim senhor, bonito sermão”!
Depois, era a debandada geral, o destroçar p´rá rambóia. A festa ia continuar em plena Feira da Luz, numa indescritível barafunda de pregões, algazarra, música, berros…Porém, quando o cansaço os começasse a derrubar, era o regresso a casa, o levantar do arraial…O povoléu punha-se nos “calcantes” e então, pela Estrada do Paço do Lumiar, Estrada de Telheiras, Azinhaga da Fonte e Estrada do Poço do Chão, eles vinham aos magotes, devagar, foliando, derreados de tamanha farra… A chinfrineira das cornetas e dos apitos de barro da garotada, os mais pequenitos às cavalitas, choramingando, as mulheres com carregos de toda a ordem e os homens…atordoados…já com um grãozinho na asa… A caminhada seria longa, extenuante, dura…
P’ró ano, se Deus os protegesse, o maralhal lá estaria… a repetir a dose… Bons tempos!
2010 – Placa da Estrada do Poço do Chão no Palacete da Quinta do Bom-Nome, hoje ocupada pelo ISLA
Foto de Fausto Castelhano
Foto de Fausto Castelhano
Com as profundas alterações urbanísticas ocorridas na Freguesia de Benfica no alvorecer da década de 60 do século XX, o aumento da população residente e o progressivo aumento do trânsito rodoviário, tornava-se necessário romper com uma via alternativa para norte e que resolvesse, de modo consequente, estas prementes questões.
2010 – Pormenor do troço que resta da Estrada do Poço do Chão
Palacete da Quinta do Sarmento ou do Bom-Nome
Foto de Fausto Castelhano
Palacete da Quinta do Sarmento ou do Bom-Nome
Foto de Fausto Castelhano
Assim, em 23 de Agosto de 1967, na presença de França Borges (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa) e de outras destacadas individualidades, foi inaugurada uma nova avenida, a Avenida do Uruguai que, prolongando-se a partir do final da Avenida Gomes Pereira termina nos últimos prédios desta nova via. A partir daí, tomou o nome de Avenida Marechal Teixeira Rebelo e, então sim, ruma na direcção de Carnide e a outros povoados circundantes localizados a norte da Freguesia de Benfica.
E, agora, voltamos à nossa venerável Estrada do Poço do Chão… Assim, como já se referiu anteriormente, um pouco antes da visita ao Largo da Luz, da procissão e da feira, a Estrada do Poço do Chão desembocava na Estrada da Correia (já na Freguesia de Carnide) e terminava, do lado esquerdo, com o palacete da Quinta do Bom-Nome (ou do Sarmento) e, do lado direito, com o muro da Quinta do Conde de Carnide.
2010 - Fachada principal do palacete da Quinta do Bom-Nome ou do Sarmento.
Aqui, estamos em plena Estrada da Correia.
Foto de Fausto Castelhano
Aqui, estamos em plena Estrada da Correia.
Foto de Fausto Castelhano
O traçado da actual Rua da República da Bolívia corresponde, sem alterações de monta, ao da vetusta Estrada do Poço do Chão. Isto é, até onde a nova via termina e que, através da existência de uma rotunda, tem acesso à Avenida do Uruguai e, também, à Avenida General Teixeira Rebelo e à Estrada dos Arneiros e ao Bairro da Quinta do Charquinho.
Assim, a partir do final da Rua da República da Bolívia tornava-se, sem dúvida, uma incógnita.
No final desta primeira investida, mas possuídos de uma enorme esperança nos objectivos a que nos abalançámos, recebemos a devida recompensa pelo nosso empenho e persistência. Para nós, foi com uma ilimitada emoção, surpresa e felicidade, a descoberta das placas toponímicas daqueles caminhos tão antigos, mas carregados de gratas recordações.
Actualmente, da antiga Estrada do Poço do Chão, apenas existem 2 reduzidos troços (ambos com cerca de 250 metros). Um deles, já na Freguesia de Carnide, constitui o último trecho da Estrada do Poço do Chão e tem o seu termo no mesmo local de sempre. Entalado entre o palacete da Quinta do Bom-Nome ou do Sarmento e o chamado “Bairro Novo de Carnide” (construído pela EPUL), isto é, no cruzamento com a Estrada da Correia. Uma das placas está fixada no palacete da Quinta do Bom Nome (hoje ocupado pelo ISLA – Instituto Superior de Línguas e Administração) e a outra, num dos prédios do Bairro Novo de Carnide.
2010 - O troço que resta da Estrada do Poço do Chão no prolongamento da Rua da República da Bolívia.
Termina num matagal.
Foto de Fausto Castelhano
Termina num matagal.
Foto de Fausto Castelhano
O outro troço localiza-se no prolongamento da Rua da República da Bolívia (e está devidamente sinalizado) e, depois de transpor um pequeno túnel sob um prédio, encontra-se apertado entre os prédios do Bairro da Quinta do Charquinho, do lado esquerdo e, do lado direito, pelos armazéns dos Móveis do Norte e as instalações da Associação de Solidariedade Social “O Companheiro”. E, aqui, o que resta da Estrada do Poço do Chão, termina num matagal.
E pronto! A primeira etapa desta jornada está completada. Daqui, vamos arrancar até ao nosso próximo alvo: Azinhaga da Fonte!
Continua…
Fausto Castelhano
14 comentários:
Muitíssimo obrigada, amigos Fausto & Lídia pelo passeio-andarilho que proporcionou esta magnífica reportagem, repleta de tantos testemunhos e memórias... com as quais, diariamente, vamos aprendendo convosco!
Um grande abraço
Muito bem Castelhano. Conheci todos esses locais aqui assinalados. Brinquei com os meus amigos da Calçada do Tojal muitas vezes nos terrenos das Pedralvas sobretudo numa fábrica que ali existia, onde procuravamos caricas para colecção. As caricas tinham naquela altura uma importância muito grande para nós. Brincavamos com as caricas nos lancis dos passeios. Nas Pedralvas havia também a Fábrica Tintas Atlantic. Belo documento este do Castelhano!
-Esqueci-me de dizer que este apontamento do Castelhano mais me inspira para levarmos a cabo a "BENFICA EM FESTA", assim haja colaboração. Não era bonito ver-se a população envolver-se num projecto destes, trajando-se a propósito na iniciativa DESFILE DAS TRADIÇÕES?
Sr. Castelhano,
obrigada por nos permitir partilhar consigo e com a D. Lidia, o prazer de "caminhar-mos" novamente pelas "nossas" antigas azinhagas de Benfica.
Um abraco
Dulce P.
Fabuloso!
Leonor Nunes
Amigos Fausto e Lau,
Este magnífico post do Fausto, assim como um dos comentários do Lau deram-me uma ideia muito engraçada, sobre a qual vos falarei brevemente.
Um grande abraço
Magnífico, excelente memorial, se a Junta de Freguesia tivesse conhecimento deste revisitar o passado em Benfica, poderia publicá-lo e dá-lo a conhecer aos seus habitantes!! Parabéns Jorge Resende
E podia organizar passeios pedestres por estes antigos percursos. O Fausto era o guia.
Leonor Nunes
Querida amiga Leonor,
A ideia de que falava mais acima, vai muito ao encontro da sua sugestão :)
Falaremos melhor sobre isso muito em breve, no âmbito do Movimento de Cidadãos ;)
Caros amigos
Os meus agradecimentos pelos simpáticos comentários que tiveram a gentileza de me endereçar e que me sensibilizaram bastante. Brevemente, enviarei a segunda e última parte deste trabalho, desejando que seja, igualmente, do vosso agrado.
Um abraço a todos os amigos
Fausto Castelhano
Fausto: obrigado pela sua (precisa) descrição da Estrada do Poço do Chão e da Feira da Luz, com a temática da Procissão quase a fazer-nos lembrar o poema de António Lopes Ribeiro celebrizado pela voz de João Villaret. Espero ansioso pela descrição da Azinhaga da Fonte, que tantas vezes percorri a pé a caminho do Estádio da Luz, mas da qual não tenho um imaginário muito saudável pois apenas registo na minha memória o esgoto a céu aberto que ladeava esta azinhaga e cujo cheiro roçava o nauseabundo.
Fantástico trabalho Sr. Fausto.
Tantas e tantas vezes percorri a Azinhaga que dava acesso à Quinta das Pedralvas a caminho da escola primária e nas intermináveis brincadeiras de criança.
Na zona de Carnide, na Av. Cidade de Praga, em frente às instalações do Metro, ainda existe uma longa azinhaga, muito bem conservada, mas penso que, se calhar o Sr. Fausto vai falar dela na 2.ª parte, que ansiosamente aguardo.
Luís
Amigo João
Um obrigado muito sincero pelo seu comentário.
Quanto à ribeira da Azinhaga da Fonte, temos que nos situar na década de 40 e 50 do século XX. Na ribeira da Azinhaga da Fonte, na ribeira que atravessava a Quinta do Sarmento e no nosso rio (a que teimam em chamar de “caneiro”(uma palavra muito safada) até se apanhavam molhadas de agrião, o tal de folha miúda, o mais saboroso e que bate aos pontos o agrião de folha largona, cultivado em estufa e cheiinho de fertilizantes nocivos p´rá saúde. Nós vivíamos alegres e contentes, acordávamos com o cantar estridente dos galos, a chilreada da passarada enchia-nos a alma de ânimo, bebia-mos a água dos poços, fresquinha. Víamos nascer o sol por detrás do Alto de Campolide. Os trigais salpicados de papoilas vermelhas, foi chão que deu uvas. Fomos as grandes vítimas do chamado “progresso”. A ganância da especulação imobiliária, avassaladora, tirou-nos tudo. Arrasaram as quintas, derrubaram as árvores, taparam os poços. Plantaram blocos de gaiolas sem qualquer estética, sem espaços verdes e de lazer e, depois, chegaram aos milhares e milhares e milhares. De todos os quadrantes da rosa dos ventos. Ocuparam tudo. Fomos assaltados. Assim, claro está, nem as ribeiras escaparam. Era inevitável. Porém, as águas das nossas ribeiras, as que guardei no meu imaginário, pouco ou nada têm a ver com aquelas com que depois se tornaram. Aí, tem o nosso amigo João toda a razão!
Um grande abraço
Fausto Castelhano
Sim...senhor! Isto é que é conhecer Benfica !!!!
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