Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2010)
(Por Fausto Castelhano)
Augusto Castelhano era um homem bom. Oriundo da região de Aveiro, à beirinha do Antuã e do esteiro de Salreu, cedo emigrara para Lisboa onde fora acolhido por um irmão mais velho, o ti’Manel Castelhano (que se dedicou, com sucesso, à agricultura) e onde também vivia a irmã, a tia Palmira. Ambos viviam na zona de Carnide.
Foi apanhado pelo vendaval da 1ª Guerra Mundial de 1914/1918 e onde a fome, o frio e todas as desgraças que uma guerra possa acarretar, o marcaram para o resto da vida. “Se soubessem o que era fome, até cornos comiam”, dizia ele aos filhos quando, fartos ou enfastiados, deixavam algo no prato. Regressou da Flandres com uns escassos 45 quilitos. Um verdadeiro esqueleto andante. Abandonados à sua sorte pelo governo de então, só regressaram a Portugal muito depois da guerra ter terminado.
França 3 de Novembro de 1917
Fotografia gentilmente cedida por Fausto Castelhano
Depois, casou com a “prometida”, a namorada que namoriscava antes de ter rumado para as lonjuras de França integrado no C.E.P. (Corpo Expedicionário Português).
Fumava cigarro de enrolar: mortalha “Conquistador” e onça de tabaco “Superior”. Era leitor assíduo do "Diário de Notícias" que comprava todos dias. De quando em vez, assobiava a Marselhesa.
Depois, estabeleceu-se como agricultor na Quinta de Montalegre (ou da D. Leonor), em Carnide. Enorme, encostada ao Colégio Militar mas, vinha por ali abaixo até à Estrada da Luz e à Azinhaga dos Soeiros e, por outro lado, até à Azinhaga da Fonte (hoje, Avenida do Colégio Militar).
Era uma quinta fantástica antes de ser abocanhada pela construção do Estádio de S.L.Benfica. As searas de trigo; os dois mil pés de oliveira (azeite de primeira); os campos de aveia; a habitação onde nasceram os filhos, junto à Azinhaga dos Soeiros; a belíssima horta que fornecia todo o género de hortaliças (de excelente qualidade) para todo o lado; os poços, a mina de água, a cascata monumental junto à Azinhaga da Fonte e o caminho ladeado de choupos que nos levava até lá. Foi tudo na voragem.
1941 - Quinta de Montalegre ou da D. Leonor
(Augusto Castelhano com os hortelões na horta. Eu próprio ao colo do tio Augusto.
Em segundo plano, o primeiro do lado esquerdo, é o ti’Conde, o vaqueiro. Em primeiro plano, o primeiro à esquerda é o António Russo - vive na Rua dos Arneiros -; o segundo é o Godinho)
Fotografia gentilmente cedida por Fausto Castelhano
Depois, havia o gado. Bois de trabalho para a lavra, as carroças de transporte da erva, das hortaliças para o mercado, dos molhos ou fardos de palha depois da ceifa, do grão extraído pela debulhadora, etc.
Ah! As vacas leiteiras. Uma bela vacaria com o Sr. Conde, o dedicado vaqueiro de muitos anos. Agora, mungir cerca de 50 vacas, vergado pelos rins, sentado num banquinho junto às tetas da vaca e levando, de vez em quando, uma vergastada nas ventas quando o animal resolvia sacudir as moscas com o rabo, era tarefa bastante árdua. Duas ordenhas diárias com início às duas da matina e depois do almoço, às 14 horas.
Esta vida nos campos, na agricultura e toda a actividade inerente a esta actividade, não era nenhum “mar de rosas” e estava muito condicionada pelos caprichos da mãe natureza, pelas agruras do tempo incerto, do calor e das chuvas, das geadas e do frio…
Augusto Castelhano enviuvou cedo e depois voltou a casar levando, consigo, quatro rebentos do primeiro matrimónio e, deste novo enlace, resultaram mais quatro rapazes. Depois, por desavenças com a dona da quinta, zarpou e estabeleceu-se numa outra herdade, com muito piores condições, na área da freguesia de Benfica.
Homem de grandes brios, tinha um enorme orgulho na excelente água-pé que fabricava com uva da região de Torres Vedras e que batia aos pontos, por larga margem, toda aquela que existia nas quintas em redor e que, por vezes, não passava de uma miserável zurrapa.
Porém, onde ele não transigia, era no gado leiteiro. Frequentemente visitava as Feiras da Malveira (onde, numa casa de pasto, almoçava grão com bacalhau, sempre), da Moita e do Pinhal Novo, onde tentava adquirir os melhores exemplares que por ali aparecessem através dos comerciantes de sua inteira confiança. E vinham, na maioria das vezes, à experiência. Se, porventura, produziam abaixo da fasquia de 20 a 25 litradas de leite, eram logo recambiadas. Comer e não produzir, não encaixava.
1948 – Quinta do Charquinho
(Augusto Castelhano com o “Castiço”, o fabuloso boi de cobrição)
Fotografia gentilmente cedida por Fausto Castelhano
Todavia, onde Augusto Castelhano se perdia de amores era com o “boi de cobrição”. Era uma cisma que lhe estava entranhada na cachimónia. E se eles custavam uma nota preta…Alimentados com rações de excepção levavam uma rica vida. Folgada, os mariolas…Perigosos, marravam que se fartavam…Escoucinhar a torto e a direito, era com eles e só acalmavam quando lhes cheirava a fêmea por perto. Ficavam logo de focinheira no ar. Para os dominar com uma certa segurança furavam-lhes o focinho com um ferro em brasa e logo, sem contemplações, era-lhes colocado um arganel metálico. Aí era presa uma corda ou uma arreata de couro. Só com estas condições, muito bem estudadas, se podia dominar tão perigosos animais...
Mas o “Castiço”, entre todos, foi um boi de cobrição de excepção, de altíssimo gabarito e com um notável desempenho que a todos deixava de bocarra aberta. A fama do “Castiço” chegou longe e Augusto Castelhano fazia-se cobrar de acordo com a extraordinária eficácia de tão belíssimo animal. Cinquenta escudos por cada fecundação garantida, na década de 40 do século XX, era uma boa maquia. Durante alguns anos e pela constante e renovada afluência de clientela, a verba acumulada, “à pala” do extraordinário “Castiço” foi, deveras, muito significativa.
Com a idade, “Castiço” amochou e perdeu qualidades, esgotado, coitado. Assim, foi despachado p’ró talho, p’ra bifes. Entretanto, vieram outros para a mesma função mas, como aquele possante bicharoco, jamais houve algum que lhe chegasse aos cascos. Uma imensa, imensa saudade…
A quinta, que tão boas recordações nos deixou pela vida fora foi, paulatinamente, declinando a partir da década de 60 do século passado devido, sobretudo, à mecanização dos trabalhos agrícolas, aos novos meios de produção mas, também, a doença grave de Augusto Castelhano. Vendeu tudo. Alfaias agrícolas, as pipas do vinho e a prensa, o gado. Abalou para a terra que o viu nascer contudo, a saúde atraiçoou-o aos poucos. Foi piorando cada vez não obstante, sempre que pressentia o padre Canelas (o pároco da freguesia) a rondar-lhe a casa, a convite da esposa Augusta, exaltava-se e praguejava bravamente. Resistiu estoicamente, e até ao último sopro, que lhe fosse ministrado o sacramento da Extrema-Unção. Por fim cedeu e… apagou-se serenamente.
É até é de presumir que, o derradeiro pensamento de Augusto Castelhano antes de entregar a alma ao Criador, fosse para o seu querido e fabuloso “Castiço”, que ele tanto adorava, o boi de cobrição que espantava o mundo com as suas inesgotáveis façanhas e que lhe enchia o peito de tanto e merecido orgulho…
Penso que foi o último dos grandes “bois de cobrição” que Benfica teve a honra de acolher no seu regaço e que pisou terra da nossa freguesia. E bem se pode orgulhar do nosso insaciável “Castiço” pois este, jamais deixou os seus créditos por mãos alheias. Guardemos, pois, a sua memória…
7 comentários:
Um texto sobre um tema muito interessante que, também, faz parte da vivência da nossa freguesia.
Um agradecimento muito especial ao Fausto pela magnífica partilha destas suas memórias!
Fausto: essa Quinta da D. Leoneor fazia fronteira com a Quinta do Bensaúde, nas Laranjeiras ?
Olá João
A Quinta de Montalegre ou da D.Leonor era enorme. Confrontava, por um lado, com o Colégio Militar e depois, seguia pela estrada da Luz (onde existia um portão de entrada), virava á direita pela Azinhaga dos Soeiros (onde tinha mais um portão que dava para as casas de habitação, as vacarias e outros aposentos, a horta, etc.). Um pouco mais à frente desse portão (na Azinhaga dos Soeiros) a quinta era confrontada com a Quinta do Zé Antunes (era com este nome que sempre a conhecemos). Daí, vinha até à Azinhaga da Fonte (onde existia outro portão e a famosa Cascata) e, depois, seguia até ao Colégio Militar. Estes eram os contornos da Quinta de Montalegre.
A quinta do Bensaúde ficava do outro lado da Azinhaga dos Soeiros e deitava para a Estrada da Luz.
Um abraço de muita amizade
Fausto
Sr. Fausto, foi um prazer ler o seu testemunho. Recordei o tempo de crianca em que eu e muitos outros, iamos á Feira da Luz, a pé, pela azinhaga, entre a quinta e o Cemitério. Que medo nós tinhamos, na altura! Para lá era uma alegria, mas a volta...
Uma abraco
Dulce P.
Sr. Fausto, mais uma vez, um excelente texto cheio de emoções. Muito obrigado pelas recordações que nos tem trazido.
Luís
"a habitação onde nasceram os filhos, junto à Azinhaga dos Soeiros;"
Isso significa que, tendo em conta a actual divisão geográfico-administrativa da cidade de Lisboa, se o Fausto tivesse nascido uns 15 ou 20 anos mais tarde, o seu BI apresentaria S. Domingos de Benfica como freguesia de nascimento...
Pois é, amigo João
Porém, eu tenho documentação que diz lá, "preto no branco": nascido na Freguesia de Benfica, concelho de Lisboa. Escrito pelo punho do pároco da Freguesia de Salreu, José Gomes Leitão, a tantos, do tantos, de mil novecentos e tantos. Vejam lá para onde os meus pais tiveram a coragem de me despachar.
O problema foi o registo. Aí é que a "porca tem torcido o rabo". Ao longo da vida tem sido uma enorme e constante complicação. Às vezes ando todo baralhado e já nem sei quando nasci e muito menos quando fui registado. Naquele tempo, faziam-se coisas do arco da velha. Era muitíssimo divertido.
Mas essa história insólita fica para outra altura.
De resto, quanto às divisões administrativas são fruto, na maioria dos casos, de interesses bastante duvidosos.
Um abraço de amizade
Fausto Castelhano
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