De costas para a porta da loja, enquanto procurava a ração para as minhas gatas, ouvia-a entrar, protestando contra alguma coisa. Ao longe, enquanto passa, alguém diz:
- “Boa tarde Dª. Tina!”
Chegou perto do escaparate onde me encontrava, olhou para mim e perguntou-me:
- “Óh menina, sabe onde estão as pedras para gato?”
Indiquei-lhe um corredor à direita.
Passados uns breves instantes, voltou a chamar-me:
- “E sabe quais são as melhores pedras, menina?”
Olhei para ela de alto a baixo, meio de soslaio, timidamente.
Dª. Tina, nos seus 60 e muitos anos, tinha um ar humilde e um pouco desleixado, apesar do seu rosto revelar um porte extremamente fino. Nos pés trazia umas sandálias abertas, que deixavam vislumbrar umas unhas enegrecidas e malsãs.
Expliquei-lhe, então, que as pedras em granulado dos sacos de 10 lts. eram as mais baratas, apesar das pedras de areia fina aglomerante em pacote de 5 lts. serem mais higiénicas e, normalmente, durarem mais do que as primeiras.
- “É para o meu gato. Ele é assim como… [breve pausa, olhando por momentos no vazio] é assim como este [aponta para um gato branco, numa embalagem na prateleira ao lado]. Só tenho um gato agora. Dantes tinha muitos… mas as pessoas viam como eles estavam bonitos e gordos e comecei a dá-los. Se calhar vou levar antes este! [apontando para o pacote de pedras mais caro]”
Digo-lhe que esse pacote custa 8€ e alguns cêntimos, ao passo que o outro é só 2€ e qualquer coisa.
- “E isto está tão mau! Está tão mau!... Saí hoje para ir cortar o cabelo [passa as duas mãos pelo seu cabelo grisalho encaracolado, alisando-o nervosamente], mas já não fui. Isto está tão mau e todos me pedem dinheiro. Outro dia emprestei 20€ a um que me pediu, porque tive pena, mas já sei que não me devolvem o dinheiro. O meu marido, que Deus o tenha em descanso [junta as duas mãos, olhando para cima, como se estivesse a rezar] não… mas o meu irmão se sabe que ando assim a tirar dinheiro do banco, vai zangar-se comigo.”
Por breves instantes, não consigo evitar que a dúvida me assole o espírito e começo a pensar que, no momento seguinte, a senhora me vai pedir para lhe pagar as pedras que quer levar. Sinto-me mal com esta desconfiança, porque é mesmo muito triste este tipo de pensamentos passarem-nos assim pela cabeça, mas, infelizmente, é o próprio mundo em que vivemos que os propicia.
Mas Dª. Tina não me pede o que quer que seja e continua, somente, a balbuciar um infindável monólogo sobre o estado do mundo, com as lágrimas prestes a marejarem-lhe os olhos.
Sem saber muito bem o que fazer, digo-lhe para ter calma e desejo felicidades e um bom ano.
E é, então, que ela se vira para mim e diz:
- “Deixe-me dar-lhe um beijo, minha querida!”
E, num sorriso imenso mas com as lágrimas já a escorrerem-lhe timidamente pelos olhos, aproxima-se de mim, agarra-me o rosto com as suas duas mãos encarquilhadas, e dá-me um beijo na testa, como se costuma fazer às crianças.
Despeço-me e volto à minha vida.
Quando, finalmente, chego ao balcão da loja para pagar, Dª. Tina ainda está na fila à minha frente, com o seu pacote de areia para gato. Pergunta à empregada da loja qualquer coisa sobre um produto vitamínico para felinos, retira uma nota de 10€ enrolada a um cartão Multibanco de dentro do bolso das calças e, por instantes, olha para trás… e já não me reconhece.
- “O que é que eu vinha aqui comprar?” – pergunta a si própria, já depois de ter pago à empregada e de em cima do balcão, mesmo à sua frente, se encontrar o pacote de areão.
Ninguém lhe responde. Os dois jovens empregados por detrás do balcão evitam olhar para ela, como se, para além de ter perdido a razão, a senhora tivesse também ficado invisível e não estivesse ali.
Subitamente, a mente de Dª. Tina regressa ao seu corpo e ela diz…
- “Ah, era isto!” [enquanto pega no pacote em cima do balcão]
Olha outra vez para mim e parece voltar a reconhecer-me.
- “A menina também vai levar pedras?” [diz enquanto coloco os 2 sacos de ração e o pacote de pedras em cima do balcão]
Respondo-lhe que sim e sorrio para ela.
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