sábado, 8 de dezembro de 2012

Crónica a 24 dias do Natal... Ou "Dissertação sobre a Invisibilidade".




“O nosso quotidiano civilizado está cheio desses seres
que mantendo uma similar aparência física,
se afastaram de tal maneira da humanidade
que perderam o laço comum.
Pelo que estão reunidas as condições objectivas e morais
para a chacina dos homens-lixo.
E essa é já uma prática quotidiana.
Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública,
exigida pela economia.”


- In Os Homens-Lixo, de Leonel Moura (1996) -
Exposição "Sem-Abrigo" (peças em bronze do escultor dinamarquês Jens Galschiøt) - promovida pela Fundação AMI na Praça dos Restauradores, em Abril de 2010.

Fotografia de Rafael Santos (2010)


(por Alexandra Carvalho)




(Sobre)Viviam, há alguns anos, fazendo pequenos biscates, de madrugada, no Mercado de Benfica – o que os ajudava a pagar o vício da bebida.

E, durante o dia, sofriam de invisibilidade.

Não que eles fossem alguns super-heróis que, por momentos, têm a capacidade de não absorver e/ou reflectir a luz visível, permanecendo, assim, num estado de invisibilidade para os outros.

O problema é que a sua invisibilidade era social!...

A insensibilidade a que haviam sido votados, durante anos a fio, bem como o facto de falarem muito mal o Português (apesar de já viverem no nosso país há longos anos), conseguira fazer desviar de si os olhares da grande maioria dos restantes cidadãos. E, assim, passaram a ser completamente ignorados, como se já nem sequer existissem na paisagem.

Muito naturalmente, perante este seu sofrimento de invisibilidade, é de compreender perfeitamente que, ao início, os três homens tenham ficado bastante surpreendidos quando aquelas duas outras pessoas os começaram a cumprimentar, sempre que por ali passavam ou os viam na rua.
E, quando se aperceberam que nada de mal os acometeria no entoar de um simples “Bom dia!”, sempre que viam essas duas outras pessoas, saudavam-nas com um cumprimento bastante mais audível e esboçavam um sorriso… como que agradecendo, por ainda se poderem sentir gente, num mundo que os tratava como lixo.


Um deles vivera, noutros tempos, numa das Vilas, em plena Estrada de Benfica… de onde, também, havia sido desalojado. Desde então, por ali foi ficando, de noite, com os seus dois conterrâneos, abrigado por debaixo das varandas das traseiras de um prédio. Ele num pequeno recanto e os outros dois numa varanda mais à frente.

Naturalmente que esta situação de extrema exclusão não era a mais adequada, nem para eles próprios, nem tão pouco para os moradores do tal prédio…

Daí as
inúmeras queixas de que já tinham sido alvo ("
encarados como detrito do sistema que se gostaria de varrer para bem longe")...
Todavia
, curiosamente,
ninguém se queixava do lixo e dos detritos de obras que, sistemática e diariamente, eram despejados a céu aberto naquele local, por moradores de uma rua ali perto.


No primeiro dia de Dezembro deste ano, por volta da hora de almoço, não se sabe muito bem como, deflagrou um incêndio no aparelho de ar condicionado por debaixo da varanda onde um destes homens dormia.


Felizmente, nenhum dos três homens ali se encontrava, nem tão pouco o rés-do-chão em questão era habitado (o que poderia ter dado origem a danos bem maiores). Tendo o fogo sido, prontamente, apagado por jovens que habitam ali perto e por alguns comerciantes do Mercado.
O aparato, por entre os carros dos bombeiros e da polícia, mais os populares que acorreram ao local, foi enorme!...
Tal como o desfilar de um rol de inutilidades (falando sem conhecimento de causa e acusando o Outro, puramente, por acusar), a saírem da boca dos vizinhos: - Que os três homens eram drogados… Que tinham queimado aquilo propositadamente… Que tinham visto um deles a fugir… Etc., etc., etc.


No final desse mesmo dia, veio a estocada final, quando ouço uma vizinha dizer-me com desdém: - "Não tenho pena nenhuma deles!"...
E eu, incrédula, a olhar para ela, pensando no que aqueles três homens - votados à invisibilidade - lhe teriam feito de tamanho mal para que ela lhes pudesse ter tal aversão.


N
o primeiro dia de Dezembro, a vinte e quatro dias do Natal, (re)aprendi que o Homem é mau por natureza e nada mudará este facto!...


E faz-me mesmo muita pena constatar
que a grande maioria das pessoas perdeu o sentido de compaixão e de se colocar no lugar do Outro...
O que é extremamente grave,
sobretudo, numa época, em que uma situação de carência nos pode afectar a todos e, de um momento para o outro, nos podemos, nós próprios, ver sem abrigo!...