domingo, 1 de março de 2009

Gente de Benfica - II








Tinha o rosto duro e queimado pelo sol, deformado por feridas antigas encrostadas.
Do braço e perna do lado direito do seu corpo apenas possuía a metade superior, e andava para todo o lado numa cadeira de rodas.

Ao fim da tarde, costumava estar junto à igreja a pedir esmola e conversava com quem vinha da missa, com quem levava os netos à catequese e com os lojistas, interessando-se pelas suas vidas e gracejando com respeito quando a situação se proporcionava a tal.

A forma como o Sr. M falava, o cuidado que colocava nas palavras e os termos que utilizava, denotavam uma pessoa inteligente e com alguma instrução. Pelo que, alguns vizinhos começaram a oferecer-lhe livros e revistas, para que ele lesse e se distraísse um pouco no antigo colégio degradado em que dormia.

Inúmeras vezes, era, também, possível encontrá-lo perto do terreno abandonado de um prédio embargado, onde se sabia que todos os toxicodependentes daquela zona deambulavam.

Na rudeza do seu aspecto ressaltava o facto de andar sempre acompanhado por uma cadela, uma jovem rafeira, arraçada de podengo, de focinho meigo, olhos doces e tristes, que seguia a sua cadeira de rodas diligentemente para todo o lado.
Por vezes, a altas horas da noite, lá ia ele, pelo meio da Estrada de Benfica, na sua cadeira de rodas, transportando-a ao colo, abraçada a ele.

Os dois passavam as manhãs a pedir esmola, à porta do Café "Monalisa", na Estrada-a-Damaia, servindo de atracção para as caridosas senhoras de idade daquele bairro (as quais acabariam por auxiliá-lo para que a cadelinha Meg fosse esterilizada no veterinário local).

No dia 10/02/06, a Meg desapareceu... supostamente, como constava na zona, roubada por ciganos que vendiam no Mercado de Benfica.

Naquele bairro, gerou-se, então, uma onda de solidariedade como tal nunca fora visto. E diversas pessoas se disponibilizaram a procurar a cadelinha, durante semanas a fio.

No dia 04/03/06, a Meg foi resgatada (ou melhor, adquirida em troca de dinheiro) de um ferro-velho num bairro social perto da Alta de Lisboa, regressando para junto do seu dono.

A estória de vida do Sr. M era bem conhecida de alguns autóctones, que se interessaram por saber como ficara naquele estado físico.

Uma história, porém, tem sempre 2 lados!
E o melhor desses lados nem sempre é aquele como a história termina. Ambos podem ser ambivalentes, dúbios e pouco transparentes, induzindo-nos em erro sobre a escolha de qual das melhores probabilidades de uma história acabar.

Em Abril de 2006, o Sr. M foi internado no Hospital Amadora-Sintra com sintomas de hepatite.
Certa noite, em Junho de 2006, regressou a casa dos seus pais num estado muito crítico; vindo a falecer a 06/06/06, minado pelas inúmeras doenças que tinha e com um tumor no fígado como causa de morte.

O Sr. M tinha 38 anos…
A sua estória nunca foi bonita... fruto de tanto engano, para poder sobreviver no mundo em que viveu.
Todavia, prefiro continuar a recordá-lo apenas por aqueles momentos que, em determinada altura, nos pareceram belos e simples, como na fotografia tirada no dia em que a cadelinha Meg lhe foi devolvida.






6 comentários:

M. A. Leal disse...

história interessante que muito me sensibilizou. Bela foto também.

Alexa disse...

M.A.Leal: muito obrigada!
E que seja muito bem vinda aqui aos "Retalhos"!
Um abraço

A.lourenço disse...

obrigado por partilhar esta história connosco. A foto, como foi dito no cometário anterior, é muito bonita.

Alexa disse...

Muito obrigada, A. Lourenço!

Titi disse...

Sem acrescentar nada de novo queria apenas dizer, porque não consegui resistir, amei de coração a história. A Foto está maravilhosamente bela!!!

Titi
www.0bazardatiti.blogspot.com

Alexa disse...

Titi: muito obrigada e bem vinda aqui e este cantinho :)
Um abraço