sexta-feira, 21 de agosto de 2009

"Salva", a gatinha dourada





"The city of cats and the city of men
exist one inside the other,
but they are not the same city".

(Italo Calvino, in "As Cidades Invisíveis")




(por Alexandra Carvalho)



Naquele bairro, a Cidade dos Gatos misturava-se todas as manhãs, através do vidro, com a Cidade dos Homens.

Qual estátua de divindade egípcia, serena e imperturbável, por detrás da montra, fazia as delícias de todos os que por ali passavam naquelas manhãs agitadas... Roubando-lhes algum tempo aos seus afazeres diários e fazendo-os parar, ficando ali especados, durante largos minutos, embevecidos a admirarem-na. Relembrando-lhes, assim, que a vida tem muito mais do que se lhe diga do que uma simples e constante correria na busca permanente de algo...


Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


Aparecera naquela rua há cerca de oito meses atrás, completamente encharcado pela água da chuva e com um ar muito adoentado.
Por ali deambulara algumas horas e, provavelmente (devido ao frio que se fazia sentir), havia saído do tubo de escape de um dos carros dos vizinhos, onde, certamente, procurara abrigo. Viram-no passar perto da paragem do autocarro, junto à cafetaria. E não mais souberam o paradeiro de tal gato (à semelhança de tantos outros felinos que nascem, crescem e acabam por morrer nas ruas das cidades).

Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


No dia seguinte, quando Lúcia abriu a porta da sua loja, eis senão quando, vislumbrou um vulto dourado a passear-se por cima da bancada central repleta de livros. Sem que ninguém se apercebesse, e aproveitando-se da infinidade de livros aninhados pelo chão como camuflagem, o gatito escapulira-se por entre a porta aberta e ali pernoitara, bem ao quentinho.

Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)



Lúcia apelidou-o de "Salvador". E ele, por ali, foi ficando...

Serenamente, calcorreando os estreitos corredores criados pelas bancadas; onde, também, se costuma esconder airosamente, para realizar investidas a inimigos imaginários, ou apenas para se escapulir às festas carinhosas e aos humanos que ainda temia. Espraiando-se delicadamente ao sol quente das manhãs em cima das molduras antigas e dos livros que compõem a montra daquela livraria-alfarrabista.



Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


Certo dia, Lúcia descobriu que, afinal de contas, "Salvador" era uma gatinha (estranho e raríssimo facto para um felino de pelagem completamente laranja)... e diminuindo-lhe o nome pelo qual já respondia, passou a tratá-la por "Salva".


Foto e concepção gráfica de Alexandra Carvalho para o "Bazar dos Ronrons" (2009)



Nessa altura, foi necessário pensar na esterilização da gatinha "Salva", devido ao primeiro cio que se aproximava e aos seus frequentes passeios pela rua.

Graças à generosidade de muitos vizinhos, e a uma iniciativa fora do comum, a "Salva" foi esterilizada a 22/01/09.

Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)



Não se tratou de nenhum golpe de publicidade, nem tão pouco de uma imitação de Dewey, o famoso gato da Biblioteca americana...
Mas a verdade é que os transeuntes começaram, cada vez mais, a ser atraídos pela pacatez das sestas de "Salva" na montra daquele alfarrabista.

"Salva" tinha cerca de 7 meses, quando por ali apareceu. Muito franzina e ainda arisca, o mais curioso era o facto de, simultaneamente, ser a gata mais fotogénica que já conheci até hoje... não tendo sequer receio da aproximação da objectiva, apesar de, nessa altura, ainda não se deixar tocar.


Fotografias de Alexandra Carvalho (2009)



Para além de, muito rapidamente, se ter transformado no "Ai Jesus da Avenida" e vedeta da casa, fazendo as delícias dos clientes e amigos (tendo mesmo constituído um séquito de fãs que, diariamente, entram na loja apenas para a verem ou demandarem novas do seu estado), "Salva" encontrou também um apaixonado (que chegava mesmo a tentar entrar para procurar a sua amada).


Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)



De início, "Salva" costumava andar muito fora e dentro, numa liberdade que espelhava bem a sua alma felina... mas regressando sempre à Casa-Mãe.

Naturalmente, com os seus protectores foi tecendo uma relação de maior proximidade: à Lúcia concedeu o privilégio da autorização para lhe serem feitas as primeiras festinhas, sendo à voz do Zé que mais responde com ternurentos miados e ronronadelas.

O tempo foi passando e "Salva" cresceu. Fruto de tanto carinho e mimo, tem vindo a tornar-se mais dócil, permitindo mesmo a alguns amigos fazerem-lhe festas.


Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)



Naquele mundo forrado de utopias passadas - que se transformou no seu -, "Salva" movimenta-se como se sempre ali pertencera e dele fizesse parte há uma infinidade.

Na cave daquela loja, onde noutros tempos se lutava por Causas nobres, passou a reinar a gatinha "Salva", aninhando-se dentro de gavetas de móveis de séculos passados, brincando por entre os trajes guardados num imenso baú... escondendo-se entre as pilhas de livros e as molduras antigas.

Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


"Salva", a gatinha que apareceu na "Ulmeiro/Livrarte" quando esta loja está prestes a celebrar o seu 40º aniversário, parece sempre ali ter vivido... e sabido porque aí tinha de regressar.

Por ali apareceu como uma pequena estrela, dando alento e novo ânimo a todos. Comprovando que, quando o Homem quer, tudo é possível... E um pequeno gesto ainda pode ser sinónimo da solidariedade a nascer entre todos (mesmo num bairro onde a vida corre mais veloz e todos nos vamos transformando em perfeitos anónimos).


Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


A Cidade dos Homens, naquele bairro, ficou diferente desde a chegada de "Salva".

Ao alterar as formas, cruzando a imagem daquela pequena gata com a de todos os que paravam a observá-la, o vidro da montra daquela loja criara como que uma espécie de metamorfose entre a gata e o Homem... transformando a grande maioria dos indivíduos em seres mais afáveis, solidários e humanos.



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Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


Se tiver curiosidade em visitar a "Ulmeiro/Livrarte" por causa da gatinha "Salva", aproveite também alguns dos seus minutos para ver com mais tranquilidade e atenção esta loja... e pode ser que aí descubra preciosidades que o encantem ou estórias importantes de outros tempos.
Vai ver que não se arrependerá!

A "Ulmeiro/Livrarte" é uma verdadeira caixinha de surpresas!...

De cada vez que lá entramos, descobrimos algo de novo, algo que se encontrava escondido e que as mãos da Lúcia colocaram em relevo, de uma forma muito bela, na montra ou numa estante.

Esta é uma daquelas pequenas pérolas escondidas do comércio local, onde nos voltamos a sentir como que impregnados daquele espírito infantil de tudo ali querer descobrir e ver, de tudo procurar como se se tratassem de pequenos tesouros e mistérios ancestrais.

Mas os maiores tesouros desta Casa, talvez, sejam mesmo a Lúcia e o Zé Ribeiro... que nos recebem sempre com um sorriso no rosto e tantas (mas mesmo tantas) estórias importantes da nossa História, para nos contarem.
O tempo por ali não parece passar, quando nos pomos na conversa e esta flúi livremente, numa amena troca de ideias (e de ideais).

Ali sentimo-nos como que em casa, tamanha é a sensação de serenidade que emana desta "família" (por afinidade)!...








14 comentários:

Dulce disse...

Olá Xana,
Deliciei-me com o texto e com as fotos da nossa "Salva". Devo dizer-te que já lhe faço festinhas e até vira a cabeça para trás. Fiquei contente e tive pena de não ter a câmara comigo, era digna duma foto, isto antes de ir para Évora donde regressei hoje. Gostei muito de a ver, está um doce.
Beijinhos
Bom fim de semana.
Dulce

cristinarino disse...

Xana,
adorei! está simplesmente lindo e a Salva é um espanto! tenho que ir vê-la. Por sinal há muito tempo que já não visito a Ulmeiro/Livrarte (para mim será sempre Ulmeiro pois foi assim que a conheci)e acho que vou lá brevemente e aproveito para conhecer a Salva.

Alexa disse...

Dulce: fico muito contente que tenhas gostado desta homenagem à "nossa" Salva e aos seus protectores, que já andava a preparar há alguns dias.

Mais contente ainda fiquei de saber que a Sô Dôna "Salva" também já te deixa fazer-lhe festinhas :)

A ver se tomamos café um destes dias :)

Espero que as férias tenham sido boas!

Bjs

Alexa disse...

Querida Cristina: muito obrigada pelas tuas palavras, amiga!
Mas o texto e as fotos mais não fizeram do que deixar aqui transparecer a beleza de (+ 1) uma estória mesmo muito mágica vivida na "Ulmeiro" ;)
Fico muito feliz de saber que a "Salva" te fará regressar à "Ulmeiro", Amiga! :)
Vais conhecer a "Salva" numa fase muito engraçada, agora mais adulta, recatada e dengosa do que quando sobre ela te falei a 1ª vez :)

Bj gd

José Antunes Ribeiro disse...

Querida amiga,

Disseram-me já várias vezes que a amizade não se agradece! Mas eu aprendi ao longo destes 40 anos da Ulmeiro (é assim que me apetece tratar a loja hoje!), por vezes com tristeza, que a ingratidão não fica bem a ninguém...Por isso, como se diz na Beira Baixa, em nome da Salva, da Lúcia e em meu nome, aqui fica o nosso Bem-Haja!...
Posso assegurar que este projecto está cada vez mais vivo e que voltará a ser uma referência no Bairro de Benfica e na cidade de Lisboa com a importância de outros tempos.Um pouco mais de tempo apenas...e já agora também o favor dos deuses e das deusas, claro!...
Um abraço grande!

Alexa disse...

Querido Amigo Zé,

Eu e tantos outros é que lhe temos que agradecer a si e à Lúcia por continuarem a acreditar neste projecto!

Quanto ao favor dos deuses, penso que já o possuem, ou o (bom) augúrio da "Salva" não teria aparecido no exacto momento em que apareceu, concedendo um novo ânimo a todos ;)


"No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo,
um carinho no momento preciso,
o folhear de um livro de poemas,
o cheiro que tinha um dia o próprio vento..."

Mário Quintana, "O que o vento não levou..."


Um abraço amigo

Anónimo disse...

Os olhos de uma querida amiga trouxeram-me aqui. São os olhos de uma mulher solidária, belos e puros, que voam com a aragem destes longos e belos dias de Verão. A história que me apontou foi a desta gata, que é, enfim, a de todos os abandonados do mundo. Mas também fala do amor de quem a recebeu, a tratou, lhe alimentou o corpo. A esperança que fica é uma grande, enorme viagem de emoções.

Bem hajam por esta ternura.

Abraço.

Eduardo B. Pinto

Alexa disse...

Eduardo: fico muito contente que aqui tenha chegado por via da Salva e da Ulmeiro.

Muito obrigada pelas suas palavras!

Um abraço

Anónimo disse...

Espreito o amor. Espreito um homem e uma mulher que fazem amor (dizem que o seu nome é Lúcia e José Ribeiro). Espreito o amor a crescer. Espreito um vulto dourado de nome “Salva” a crescer. Espreito uma mão a crescer. Espreito outra mão a crescer. Espreito, cada vez, mais mãos de Outono a crescerem sobre as folhas de um corpo. Espreito as mãos em todas as estações a crescerem. Espreito as mãos que já não conseguem passar sem o amor em todas as estações do ano. Espreito tanto, mas tanto, os sons de prazer que fico a crescer no coração e nos gestos, no desejo e no silêncio, fico a ouvir os corpos a fazerem e a receberem o amor. E continuo a espreitar cada vez mais mãos a quererem fazer amor, mãos que procuram a rua: aquela que vai dar ao amor.
São mãos urgentes, vão urgentes como o passo, vão urgentes e caladas, vão com mistério, vão com sonho e utopia. São mãos tão urgentes. Querem espalhar o amor pela cidade. Sonham estas mãos em espalhar o amor pelo mundo.
Quando lá chegam, espreito as mãos a passarem o amor sobre um vulto dourado, um vulto dourado que se transforma em múltiplas cores e em diversos tamanhos, um vulto dourado que passeia pelo sangue das páginas e aumenta o desejo das mulheres e dos homens, um vulto dourado que abre os mais deslumbrantes desejos antigos e que faz crescer desejos sem fim e que abre baús antigos e que faz um silêncio de vidas .
Assim que lá chegam todos começam a fazer amor. Todos se contagiam com o amor. Todos acariciam o amor. Todos percorrem a cor do amor, o pêlo do amor, as curvas do amor, as almofadinhas do amor, os olhos do amor, a língua do amor, as batidas do coração do amor. Depois, ouvem-se os distintos sons do amor. Alguns iluminam, logo ali, cada folhear de página, outros irradiam luz nas mãos dos homens que os transportam para casa, que se sentam com eles nos jardins, que se deslumbram nas marés, que partem, partem, que andam pelo mundo e espalham o som e a forma mais intensa de amor descoberta numa certa rua do mundo.
Maria Antonieta Preto

Alexa disse...

Maria Antonieta Preto: muito obrigada pela sua visita a este "cantinho" e, em particular, pelo magnífico texto que aqui nos deixou!

Um abraço

Anónimo disse...

Lúcia e Zé, amigos do coração

Que deliciosa e carregada da ternura dos vossos corações é a história de Salva!

Num mundo que se tornou um imenso circo onde se diverte toda a qualidade dos mais rústicos e grosseiros ladrões - pois a todos falta a finura e a elegância de um Arsene Lupin de fantasia -, é imensamente salutar saber que ainda existem pessoas que dão valor ao fascínio dos sentimentos generosos.

Se eu tivesse a pretensão de ser Deus, poria umas asas de anjo nessa amorosa gatinha ruiva que em momento apropriado surgiu nas vossas vidas.
Assim, não sendo mais do que um vulgaríssimo humano, em pensamento coloco no pescoço de Salva um modesto colar de violetas roxas.

Abraços do amigo e solidário
Ascêncio de Freitas

Fauna Urbana disse...

Que história lindíssima Xana, e que gatinha amorosa!

É inspirador ver que nem sempre o final é triste e que, com boa vontade e entreajuda, é possível fazer brilhar a vida de uma doce criatura como a Salva, simultaneamente fazendo sorrir todos aqueles que com ela se cruzam.

Beijinhos, e continuação de um bom fim-de-semana! :)

Alexa disse...

Ascêncio de Freitas: muito obrigada pela sua visita e, sobretudo, pelas palavras tão bonitas que aqui deixou a 2 pessoas muito especiais :)

Um abraço

Alexa disse...

Fauna Urbana: muito obrigada pelas tuas palavras, Amiga!
A "Salva" é, de facto, uma gatinha muito especial... e esta loja mais ainda!
Tens que a visitar, pois fica bem perto de ti ;)
Bjs