sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Marijú, o Café esquecido






Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2010)





"Marijú, o Café esquecido"
(ou quando o “Calminhas” rachou a cachola ao Joãozinho)


(por Fausto Castelhano)




Tendo a Igreja de Nossa Senhora do Amparo como epicentro e num raio relativamente reduzido, era onde toda a vida social da comunidade se desenvolvia. O mundo da Freguesia de Benfica, o seu centro nevrálgico nas décadas de 50/60 resumia-se e situava-se, exactamente, ali.
A igreja, as missas e os seus inúmeros fiéis; o campo Francisco Lázaro e o ringue Fernando Adrião; a “praça de levante” na Avenida Grão Vasco;
O Teleclube, do padre Álvaro Proença, instalado no edifício do Patronato Paroquial;
As tascas, a do Sr. João (frente ao Chafariz Grande) e a outra, na Travessa do Rio (taverna/carvoaria onde, hoje, é o Restaurante “A Travessa"). Nesses recantos, jogavam-se os inevitáveis matraquilhos e o “negus” (uma variante de Snooker, mais pequeno, cinco buracos e um pivot);
O cinema no salão ou no ringue de patinagem (no Verão) da sede do Benfica (sempre com dois filmes, afora as Actualidades do famigerado SNI), na Avenida Gomes Pereira;



"Estrada de Benfica – Igreja – Vista panorâmica do centro da Freguesia" (1970)
Fotografia de João Brites Geraldes, in
Arquivo Municipal de Lisboa




Os cafés, mesmo ali, à discrição: o "Paraíso de Benfica", do Sr. Manuel Madureira e a "Adega dos Ossos" com a sua Junk-Box; eventualmente, e só para beber a “bica” ou bebericar a cervejola da ordem, no "Girassol" (com a sua pequeníssima esplanada no passeio); um pouco mais afastados, a Cervejaria "Estrela Brilhante" e a "Regional".

Porém, subitamente, algo se alterou na pacatez do burgo. E qual era a espectacular novidade que tanto alvoraçou as gentes do povoado?
Um novo e atraente Café (onde, hoje, é o Estabelecimento "Fica-Bem"), mesmo ao lado do adro da igreja: “Café Marijú”.
Ena, pá! Que nome tão catita…
Esplanada à porta (ocupando parte do passeio frontal), provida de mesas e cadeiras (novinhas em folha) e, a toda a largura da fachada, um toldo modernaço onde estava escarrapachado: “Marijú”… Tudo, tudo, “nos conformes”!... Um local “barilaço”, escolhido a dedo!... Era o máximo, na verdadeira acepção da palavra…

Ponto estratégico, por excelência, para quem pretendia, com olhinhos de ver, apreciar às miúdas que por ali passavam, especialmente as que frequentavam a Igreja, assistiam às missas ou pertenciam às Juventudes Católicas. Moças muito requestadas. Com muita delicadeza, lançavam-se os piropos da ordem. E, àquelas que desciam dos “amarelos” (a paragem da carreira Nº 1 era em frente da esplanada) eram, também, contempladas com o mesmo tratamento. E neste importante pormenor, éramos muito delicados, respeitadores e… nenhuma jovem era discriminada…



"O cruzeiro do Adro da Igreja de Benfica" (s/ data)
Fotografia de Judah Benoliel, in
Arquivo Municipal de Lisboa




Na verdade, o “Marijú” era outra loiça! Da “finaça”… está claro…
Largueza de espaço, empregados muito compinchas (alguns eram do Café "Paraíso de Benfica", já que o Sr. Manuel Madureira era, também, o proprietário do “Marijú”) e depois, um grandessíssimo estoiro: bilhares! Nem mais! Aquelas mesas de madeira polida com os correspondentes panos verdes, aveludados, e as bolinhas luzidias, oh! Uma raridade de “encher o olho”.
Enfim, era um luxo desmedido que nos deixava, a todos, estarrecidos e de cara à banda…Realmente, para quem estava afeito aos matraquilhos, a extravagância era, efectivamente, um requinte de arromba… E depois, aquele toque de bizarria ao besuntar a ponta do taco com o cubinho azul, uma espécie de giz!... Aí, sim… Era a quinta essência da barbatana! Sim, senhor! Benfica, finalmente, acertava o passo com a modernidade…Já não era sem tempo!

Resolvemos arriscar e… fomos experimentar…
Desajeitados, não se conseguia acertar uma. Não era, decididamente, o nosso “métier”. Uma lástima, não obstante, aguentava-se por distracção, saudável convivência (acima de tudo), e aproveitava-se a oportunidade para rever os últimos acontecimentos.

“Calminhas” era de estatura franzina. Tinha “repentes”. Imprevisível! Em mim próprio, deixou a sua marca indelével, na cabeça e num braço. Ainda na Primária, atirou-se ao Victor Louro como gato a bofe e… afinfou-lhe uma brutal dentada na bochecha. Assim, tal e qual… Não falhava!

Naquele malfadado dia era a vez do “Calminhas” segurar o taco e praticar aquela novíssima arte… O taco devia ser zarolho. De cada vez que “tacava”, a bolinha escapava-se à toa, ou então, falhava redondamente colocando, em sérios riscos, o pano verde… Não havia jeito de engrenar… Bom, depois, à volta da mesa de jogo, rebentava a risada geral. Gozava-se o prato… em grande!

Joãozinho, jovem como nós, vivia com a avó na Travessa dos Arneiros. Gente fina, da melhor linhagem do povoado. O moço não tinha nada a ver com o naipe de matulagem que se divertia por qualquer laracha que lançassem para o ar. Porém, tal como outros jovens, aproximava-se, contagiado com tanta alegria e boa disposição daquela “gajada porreiraça”. Galhofávamos, à “fartazana”, açambarcando as atenções de todo aquele espaço de jogatina.



"Estrada de Benfica, Nº 662" (1961)
Fotografia de Artur Inácio Bastos, in
Arquivo Municipal de Lisboa

Café Marijú – Ao lado do
Adro da Igreja onde, hoje, está o Estabelecimento Fica-Bem. A paragem do eléctrico da Carreira nº 1 era em frente ao café. A esplanada com as cadeiras, mesas e o toldo.





Joãozinho teve muito azar e nunca imaginou o sarilho “das arábias” onde se foi enfiar.
Quando o “Calminhas” falhou mais uma tacada, Joãozinho desatou na risota convencido, talvez, que estaria entre os seus amigos de confiança. Repentinamente, “Calminhas” ficou com as tripas do avesso”. Cerrou a dentuça, empunhou o taco como se fora uma cachaporra e, com uma violência inaudita descarregou, com a parte mais robusta daquela arma, uma valentíssima bordoada na cachola do infeliz Joãozinho que, de certeza absoluta, até viu as estrelas do firmamento. O sangue, sem “tardança”, espirrou aos borbotões e não havia nada que o detivesse.

No interior do Café "Marijú" levantou-se, de imediato, um formidável burburinho que, de chofre, alcançou a rua. Clamava-se pela polícia numa tremenda berraria e as gentes, atarantadas, corriam num desatino sem saber como agir…

Completamente atordoado, Joãozinho foi cuidadosamente amparado e levado em braços… "Calminhas”, pé ligeiro como era, saíu disparado porta fora e ninguém lhe conseguiu deitar a unha. O taco ficou rachado e a “matula” deu de “frosques” enquanto o “diabo esfregou um olho”.
Ainda aparvalhado com a inaudita agressão, Joãozinho foi socorrido e levou uma série de pontos na carola.

O Sr. Madureira, como é óbvio, entrou, aceleradamente, em parafuso com tão degradante espectáculo. A reputação do Café "Marijú", não podia ser posta em causa “à pala” dum bando de safados!

Entretanto, “Calminhas” desapareceu da circulação durante uns dias (era useiro e vezeiro na táctica) e Joãozinho, durante algum tempo, ostentou um bonito escrito na cabeçorra de razoáveis dimensões.
“Calminhas”, às tantas, reaparece com uma descarada descontracção passeando-se, à vontade, como se não tivesse nada a ver com tão melindroso assunto. Ele era assim, sem tirar nem pôr! Não há notícia de, alguma vez, ter sido incomodado… Tinha artes de se safar, sorrateiramente!




"Estrada de Benfica - Igreja" (s/ data)
Fotografia de Eduardo Portugal, in
Arquivo Municipal de Lisboa

Café Marijú – E lá estão as cadeiras, as mesas e o toldo. A tabuleta da paragem do eléctrico da Carreira nº 1, está lá, quase no topo da copa da árvore (ulmeiros).






Aos poucos, “Calminhas” começou a entrar no Marijú, nas calmas e ar escarninho, como se fosse um rapazinho de coro sem qualquer mácula. Os empregados, bons rapazes, miravam-no um bocado de través… aguardando qualquer cena de faca e alguidar. “Calminhas” assobiava p’ró lado e… fazia-se desentendido…



Estabelecimentos "Fica-Bem"
Fotografia de Fausto Castelhano (2010)

Era, exactamente aqui, que existiu o tão badalado Café "Marijú".




Para nós, o bilhar terminou naquele dia, mas estou em crer que o encanto do Café "Marijú" acabou por se perder sem a assídua presença, a alegria contagiante e a irreverência daquela “malta brava” à qual, eu próprio, tive a enorme felicidade de pertencer.

Durante algum tempo, o Sr. Manuel Madureira interpelava-me no sentido do “Calminhas” pagar o conserto do taco todavia, nunca soube se, algum dia, acertaram as contas ou não… Tenho a convicção que, mais tarde, acabaram por fazer as pazes…

O Café "Marijú" não teve existência muito longa. Com a revolução urbanística operada na nossa freguesia, julgo que o Café "Marijú" encerrou portas antes da década de 70 do século XX.

Este rocambolesco episódio e outros do mesmo jaez, jamais foram esquecidos e ficaram profundamente gravados, para sempre, no nosso imaginário.
Já lá vão mais de cinquenta anos porém, ao evocarmos a palpitante cena a que nos foi dado assistir garanto, a pés juntos, não resistimos às memórias que nos são tão caras… Nos nossos rostos, é fatal… aflora-nos um largo sorriso de orelha a orelha pela nostalgia dos tempos idos e pelo protagonismo de que fomos eméritos actores…
Uma inconsolável e imensa saudade…








8 comentários:

Julio Amorim disse...

Curioso....mas deste café já não tenho ideia. Seguramente que fechou na primeira metade dos anos sessenta....senão nao me tinha escapado.

Dulce P. disse...

:-))
Foi um prazer ler o seu testemunho. Obrigada!
Deste café, nao tenho ideia nenhuma, tenho só uma vaga ideia da construcao daquele edificio onde hoja está o Fica Bem, construca essa que deverá ter sido em meados dos anos 60...???
Um abraco

Dulce P.

Anónimo disse...

Obrigado, mais uma vez, pelo magnifico testemunho.
Também não é do meu tempo esse café (nasci nos finais dos anos 60) e sempre me lembro do Fica-bem.
Um abraço.
Luís

Alexa disse...

Amigo Fausto, mais um excelente testemunho das suas vivências em Benfica. Muito obrigada!

Apesar de não ter conhecido este Café, o que achei mais curioso foi o facto dele ser também propriedade do Sr. Madureira do "Paraíso".

Será que este "Marijú" era dirigido a um público mais jovem do que o do "Paraíso"?

Domingos Estanislau disse...

Sim Alexa, a Mariju era frequentada por malta mais jovem. A Mariju tinha bilhares e a malta mais nova era por ali que parava.
O Nilo quando abriu também tinha bilhares na cave. Havia espaço de estacionamento em frente ao Nilo e aquela zona era muito frequentada por jovens. Era o centro nevralgico para a malta dar uns piropos às miudas que por ali passavam. Mas era tudo na boa

Alexa disse...

Domingos: muito obrigada pelas informações que aqui também nos deixou sobre a "Marijú"!

Desconhecia por completo que o "Nilo" tivesse tido bilhares.
Facto bem curioso para o café em que se transformou hoje :)

Fausto disse...

Olá

Sim senhor! O "Nilo" também teve bilhares na cave. Porém, o "Nilo" nunca reuniu, nem as minhas preferências nem as do meu grupo, uma rapaziada fora de série, muito porreiraça.
O local, em questão, já não nos dizia nada, desde que o campo do Futebol Benfica mudou de poiso e a fisionomia de toda aquela zona se tornou totalmente irreconhecível. Perdeu todo o seu encanto.
Ao contrário, o "Marijú" era muito mais animado; a Adega dos Ossos, óptima para namoriscar; o "Paraíso de Benfica", bastante sossegado, para estudar.
Passados algumas dezenas de anos, ainda hoje, continuo a não entrar no "Nilo", nem sequer para beber a "bica". Será uma cisma?
Quanto ao Clube Futebol Benfica, é minha convicção que, quando mudou de poiso para um local mais afastado do centro da comunidade, deu-lhe um baque de tal dimensão que nunca mais voltou aos tempos gloriosos de outrora...Com muita pena minha!
Um abração a todos os amigos

Fausto Castelhano

Alexa disse...

Amigo Fausto: talvez, por nem sequer para tomar a bica entra no "Nilo", é que outro dia nos desencontrámos, aquando das assinaturas para as Vilas ;)

Quanto ao Clube Futebol Benfica, estou certa que esta iniciativa do Lau sobre o "BENFICA EM FESTA!", em Junho, nos vai trazer muitas novidades e um novo ritmo ao espírito da vida neste nosso bairro ;)