sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica e o velho Cemitério da Freguesia





Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2010)




"(...) Hoje, vamos trazer à liça a Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica, o velho e o novo Cemitério, as ossadas e, se calhar, almas do outro mundo.

Espero que os nossos amigos que têm desenvolvido um notável trabalho de pesquisa no que diz respeito à Sociedade Euterpe, não se sintam melindrados com as manigâncias dos dirigentes desse tempo que, pelos vistos, tentaram dar uma pequena golpaça à Irmandade do Santíssimo Sacramento. Se fosse hoje, a Comunicação Social tinha ali pano para mangas para duas ou três semanas.

A amiga Alexa não imagina o gozo que me deu (e à minha mulher) ao desenterrar este saborosíssimo episódio.

Como pode verificar na legenda da foto do coreto, o edifício é o mesmo de hoje porém, a rua não tinha o nome que tem hoje (Rua Ernesto da Silva). Na realidade, no tempo em que foi implantado o coreto, era a Rua do Espírito Santo. Brevemente, farei um pequeno texto sobre esta questão.


Fausto Castelhano"





A partir do século XVIII e com o aumento demográfico da Freguesia Benfica, após a descoberta destes pitorescos e aprazíveis lugares de veraneio colocou-se, a breve trecho, a questão de construir uma nova igreja que comportasse o enorme número de paroquianos que, ao templo, afluíam.
Essa ideia deve ter sido aceite com bastante entusiasmo e, naturalmente, já devia estar na mente dos paroquianos desde muito tempo atrás.

João Frederico Ludovice, que passava a época de Verão na sua casa apalaçada, no sítio da Alfarrobeira, deve ter desempenhado um importantíssimo papel na realização do projecto. É dele a primeira traça da construção e toda a capela-mor.

A 29 de Agosto de 1750, começaram os trabalhos da construção da nova igreja. Porém, provavelmente por falta de recursos, a obra parou em Dezembro de 1754.




Prédios da Rua Ernesto da Silva, que, à data do coreto da Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica, já existiam.

(Fotografia de Fausto Castelhano - 2010)



Só muitos anos depois, destacados paroquianos unidos a João Frederico Ludovice, arquitecto e valido de el-rei D.José I (que ofereceu o projecto para a restante obra), lançaram mãos à obra no intuito de a terminarem. Eram eles: Joaquim dos Reis e Francisco António, ambos mestres das Águas Livres; Bernardo António da Silva, escrivão da Junta das mesmas Águas; João Gomes, paroquiano e mestre-de-obras e que já havia construído a Real Obra da Memória, na Ajuda. Foram eles que tiveram uma influência decisiva no recomeço da obra em 28 de Março de 1780.
A obra avançou, com altos e baixos e com períodos de maior ou menor entusiasmo.

Então, a 12 de Dezembro de 1809 e num ambiente de extraordinário entusiasmo da população, tiveram início as cerimónias da sagração da Comunidade Paroquial de Nossa Senhora do Amparo de Benfica as quais, se prolongaram até à festa da Padroeira, em 18 de Dezembro.




Os edifícios da Rua Ernesto da Silva, que, à data da implantação do coreto no adro poente da Igreja Paroquial de Benfica, já existiam.

(Fotografia de Fausto Castelhano - 2010)



Acabada a construção e aberto o culto a todos os fiéis, verificou-se que o novo templo possuía duas belíssimas entradas com escadarias de pedra trabalhada e um enorme adro dividido em duas partes. Do lado nascente, existia já um belo cruzeiro, muito antigo e majestoso. Do lado poente, o adro tinha ainda maior amplidão e, segundo o cura João Cipriano de Assis e Morais pensava-se implantar, naquele espaço, um cruzeiro igual ao do adro do lado nascente.




Cemitério de Benfica
Augusto de Jesus Fernandes, in Arquivo Municipal de Lisboa

Portão em frente da Rua dos Arneiros. O muro em gaveto, à direita, pertencia à antiga Quinta das Palmeiras. A foto deve ter sido tirada antes de 1960.




Este projecto, porém, não reuniu os consensos necessários. O adro do lado poente, que confinava com a igreja velha, iria ser vedado com um muro que iria fechar o antigo adro de tal maneira que, toda a zona antiga será utilizada como cemitério. Tanto o velho templo, como o terreno do adro poente, irão ser utilizados com esse fim.

Assim, no ano de 1846, fizeram-se obras no cemitério novo com o objectivo de alargar o cemitério local que já existia. Demoliram a antiga igreja, já muito arruinada, mas de um valor incalculável, com portais góticos e uma antiquíssima capela de S. Roque que seria, provavelmente, as ruínas da antiga Igreja Paroquial. O cemitério passou a abranger uma área que rondava os 1250 metros quadrados e capacidade de enterramento de cerca de 90 corpos por ano.

O novo Cemitério de Benfica que, inicialmente se chamou Cemitério dos Arneiros, foi mandado construir no ano de 1869, na sequência da extinção dos antigos cemitérios paroquiais de Benfica e Carnide (localizado junto à Igreja de S. Lourenço). Para este espaço, foram trasladadas as ossadas identificadas existentes nos cemitérios paroquiais, e, nalguns casos, as próprias lápides originais das sepulturas.




O coreto construído pela Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica no adro poente da Igreja Paroquial de Benfica. O prédio que se observa em segundo plano, ainda lá está. Porém, a rua tinha outro nome… Rua do Espírito Santo.

(Imagem cedida por Fausto Castelhano)



Em 1880, o Cemitério dos Arneiros recebia as ossadas desenterradas do antigo cemitério, junto à Igreja de Benfica. Foi um levantamento muito descuidado pois, muito mais tarde e, em pleno século XX, na construção do Centro Paroquial, apareceram ossadas até dizer chega…Creio que o nome da Adega dos Ossos deriva desse mesmo facto. Aliás, era voz corrente que, na escavação inerente à construção dos estabelecimentos (onde estava a Adega dos Ossos) nos baixios do próprio cemitério, apareciam ossadas em grandes quantidades.

Construído para servir freguesias rurais, a grande expansão urbanística da cidade obrigou a sucessivas ampliações do seu espaço sendo, actualmente, o terceiro maior cemitério de Lisboa. O seu projecto inicial, de pequeno cemitério, é patente na entrada principal estreita, em nada condizente com o tamanho e movimento do Cemitério.

Chegados aqui, e depois de tanto paleio, é inteiramente justo que os nossos amigos se interroguem: - "E o que é que tem a ver a Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica com o antigo cemitério da freguesia?"
Tem e muito, como vamos já ver! Assim, socorrendo-me das memórias do pároco Álvaro Proença (que conheci muito bem e, se calhar, até bem demais…), aqui vai:

“A 1 de Outubro de 1880, tendo por juiz o Marquês de Fronteira, a Irmandade do Santíssimo Sacramento autorizou, por ofício, a Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica, a construir um coreto no adro poente da igreja ficando, para todos os efeitos, na posse da Irmandade. Tão estúpida autorização, foi votada por unanimidade e, nem sequer uma voz com bom senso, se elevou contra tal construção no antigo cemitério e de onde se haviam levantado, apenas, algumas ossadas.



Entrada do Cemitério de Benfica
(Fotografia de Fausto Castelhano - 2010)



O célebre coreto só veio a ser construído em 1900 pela tal Sociedade Filarmónica e custou, 760$345 reis. Teve uso frequente para as festarolas saloias no adro da Igreja, ou seja, no antigo cemitério. Pertencendo à Irmandade, em 1907, a tal Sociedade Filarmónica, pedia-lhe que mandasse pintar o coreto que se encontrava em estado vergonhoso. E o pedido era reforçado com a argumentação de que o coreto pertencia à Irmandade uma vez que, estava em terreno seu e lhe havia sido entregue. Portanto, os cuidados com a conservação do coreto também lhe pertenciam em boa justiça.”

Sim, senhor…Uma belíssima argumentação!

E aqui está como a Filarmónica Euterpe desenvolvia a sua notável obra de ensino e divulgação da música, mas via-se confrontada em assuntos de antigos cemitérios, ossadas, pinturas de coretos e… o que mais houvera…

Esta curiosíssima história não terminou aqui. Em 1938, a Irmandade do Santíssimo Sacramento conseguiu uma sentença favorável às suas pretensões. Isto é, a reivindicação da posse dos adros de que havia sido arbitrariamente esbulhada. Nesse ano, conseguiu a cessão da posse dos adros e igreja, em uso e administração que, em 1940, através da Concordata com a Santa Sé, se transformou em reconhecimento de posse definitiva.



Capela do Cemitério de Benfica
(Fotografia de Fausto Castelhano - 2010)



Nota: Sou um apaixonado pelas Bandas Filarmónicas. Como membro dos Corpos Sociais da STIMULI/UNISBEN tivemos, recentemente e na Freguesia de Benfica (a convite da nossa Associação) a presença da excelente Banda Filarmónica Comércio e Indústria da Amadora sob a direcção do experiente maestro Joaquim Carlos Alves Rodrigues. Desfilaram por algumas ruas da nossa Freguesia seguindo-se, um magnífico concerto de música clássica nas nossas instalações. E, se a memória não me falha, um acontecimento desta envergadura, já não se verificava na Freguesia de Benfica, pelo menos, há volta de 50 anos.
Este ano, pensamos repetir a extraordinária experiência com a presença desta categorizada Banda de Música.

Um abraço de muita amizade
Fausto Castelhano





6 comentários:

pedro macieira disse...

Muito interessante estas memórias de Fausto Castelhano, a quem dou os meus parabéns, e agradeço pela informação preciosa, que me prestou e pelo pormenor das histórias de Benfica que aqui vão aparecendo.

Esta hoje, caracteriza bem a relação que existiria em 1880, entre a Irmandade do Santíssimo Sacramento e a Philarmónica Euterpe de Bemfica, sabendo que naquela altura algum anticlerismo já existia.

No post publicado pelos "Retalhos de Bem-Fica"

http://retalhosdebemfica.blogspot.com/2010/01/em-busca-da-euterpe-de-benfica.html

Existe um programa das "Festas ao Glorioso Mártir S.Sebastião" em 3, 4, 5 Agosto de 1901- que no seu primeiro destaque, menciona:

"Inauguração do bazar, iluminação e música, tocando no novo coreto a banda da Sociedade Philarmónica Euterpe de Bemfica" - estaremos a referir o mesmo coreto?

Ao longo do tempo tenho verificado que as Sociedades Filarmónicas com a designação Euterpe - deusa grega da música, (caso no Penedo e Almoçageme em Sintra,por ex.)estariam ligados pelo espírito republicano, portanto longe de participações conjuntas com as manifestações de carácter religioso - e é curioso que nesta história e no programa das festas de Benfica de 1901, a presença da banda da Euterpe, e a sua relação com uma organização de carácter religioso.

Agradeço também à Alexandra este forum à "Descoberta da Euterpe de Benfica," que tem já dado muitos frutos, e espero em breve enviar fotos da primeira sede da Euterpe, encontrada com a ajuda de Domingos Estanislau, através deste blogue.

Abraços
Pedro Macieira

Anónimo disse...

Parabéns Sr. Fausto Castelhano, pelos seus conhecimentos da minha freguesia.
Cumprimentos
Teresa C.

Alexa disse...

Amigo Fausto: de facto, estas suas memórias tornam mais vividos esses testemunhos do Passado da nossa freguesia!
Espero, sinceramente, que mais leitores lhe tomem o gosto e a si se queiram juntar nestes contributos :)

Um abraço

Alexa disse...

Pedro: achei muito curioso esse facto que referiu, a propósito da Euterpe de Benfica ter tido relação com uma organização de carácter religioso, quando tal não era usual nesse tipo de bandas.
Será que isso teve a ver com o espírito muito característico que parecia viver-se nessa época em Benfica (onde havia uma convivência saudável e amiga)?

Pedro, não tem nada que me agradecer.
Como já disse, este blog é, cada vez mais, um espaço comunitário, onde todos partilhamos e aprendemos algo sobre Benfica através dos tempos.
Nesse sentido, eu sou apenas uma mera "coleccionadora" de Retalhos, que aqui tento organizar da melhor forma possível... sendo o mérito, de facto, de todos aqueles que contribuem com testemunhos, comentários e outros para este blog ;)

Um abraço amigo

Anónimo disse...

Que memórias fantásticas nos trás o sr. Fausto.
É um gosto ler as suas crónicas.
Luís

Fausto disse...

Amigos

Uma pequena nota sobre o coreto da Sociedade Filarmónica Euterpe de Benfica. Há notícia de que, no ano de 1956, aquando da construção do Centro Paroquial de Benfica, no adro poente da Igreja, as ruínas do coreto ainda lá se encontravam no meio do matagal.
Por outro lado, o coreto tinha base octogonal e a cobertura era em ferro com "aspas" pintadas.

Um abraço

Fausto Castelhano