segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Gente de Benfica - I




  Todos os direitos reservados © Alexandra Carvalho, "Retalhos de Bem-Fica" (2009)


Fotografia de Alexandra Carvalho (2009)


João António Lamas
, 88 anos de idade... 54 dos quais vividos na freguesia de Benfica. Filho de um militar, aos 7 anos, mudou-se com a família do quartel da Pontinha para Benfica (acabara esta de deixar de ser 'fora de portas'), indo morar para o 1º andar Dto. da Vila Ventura, no nº 674 da Estrada de Benfica - casa que pertencia a uma sua tia-avó, Dª. Ana Macedo de Barros Lamas.

Vizinho, de um lado, da escritora Maria Lamas, que morava no 1º andar da casa onde outrora existiram os primeiros correios de Benfica (na esquina com o início da Calçada do Tojal, onde actualmente, funciona uma agência do Banco Santander); a qual tinha uma filha que aterrorizava as crianças da zona, com as impressionantes façanhas que fazia com o seu olho de vidro.

Do outro lado, bem mais perto, na Vila Ana, foi vizinho de alguém que, muitos anos mais tarde, viria a ser uma iminente figura... "(...) no 1º andar vivia o Spínola. O Spínola vivia aí! (...) Ele veio ainda fardado do Colégio Militar, ele, o irmão e o pai. O pai que era do Tribunal de Contas. E o Spínola vivia ali, janela com janela connosco." Desse final dos anos 20 em Benfica, recorda que "(...) era muito agradável a vida lá nessa altura, porque era tudo muito livre, muito à vontade, havia poucas pessoas, a maior parte era ainda campo, havia muitas quintas ao longo da estrada, uma quantidade de quintas (...) eram casas de Verão, as pessoas tinham as casas em Benfica onde iam passar o Verão. (...) Era uma terra também engraçada por isto (...) havia uma simplicidade muito grande… E um respeito muito grande também, que era engraçado."

Estudou no Colégio Instituto Lusitano, quando este ainda se encontrava localizado na Quinta do Tojalinho. E é com muita ternura que se lembra dos "caga-lumes" e das suas caixinhas de gás, que, mais tarde, lhe serviriam como estojo para a escola. As amizades de criança foram cimentadas com os inúmeros filhos do Brigadeiro Maya. E a adolescência passada entre os bailaricos (casamenteiros) às 3ª feiras na quinta dos Lobo Antunes (avô do escritor António Lobo Antunes, o qual, à época, cometeu a proeza de ganhar duas vezes a lotaria), as festas de Carnaval e as "desfolhadas" dos Santos Populares.

Dessa época, recorda-se ainda muito bem de ter assistido bem de perto à revolução de 26 de Agosto de 1931; do Dr. Figueiredo, médico de renome em Benfica (bisavô da geração actual dos Lobo Antunes), que fazia com que "(...) muita gente ia de Lisboa a Benfica ao Dr. Figueiredo, que era, de facto, considerado um belíssimo médico."; e dos Serpas hoquistas, mundialmente conhecidos pelas suas façanhas neste desporto, 3 irmãos que moraram nesta casa...

De 1946 a 1956, passou 10 anos fora de Benfica, em trabalho. Tendo à mesma freguesia regressado e instalado-se na Rua Cláudio Nunes. Desse (outro 2º) tempo da sua vida em Benfica, relembra as procissões da imagem de Nossa Senhora do Amparo, da Igreja de Benfica para a de São Domingos.

E, já nos anos 60, quando, por sua iniciativa, foi criado o primeiro "tele-clube", por detrás do Chafariz... "Começou a haver a televisão e, então, muitas das pessoas não tinham possibilidades para ter televisão em casa, outras não queriam… eu não queria! (...) E então, criámos um ‘tele-clube’ de Benfica, com uma série de sócios, que iam lá ver então à noite televisão, numa sala com televisão e tal. Enfim, era uma coisa, era um acontecimento!"

Aos 88 anos de idade, com uma memória extraordinária, João António Lamas entretém-se, agora, a escrever aquilo a que chama "A minha memória"... "Não são as memórias, porque eu não gosto de memórias! (...) quando se dizem memórias são… É uma prosápia da pessoa que vai escrever… ‘As minhas memórias’ e por aí fora, ou contar aquilo que fiz, os êxitos que tive (...) Não é as memórias de mim, é a memória que eu tenho, é uma coisa completamente diferente! (...) Eu tenho, de facto, muito boa memória e, por isso mesmo, decidi escrever a minha memória, fixar no papel e deixar para os meus filhos as coisas que me envolveram durante a vida toda e que eu pude reter na minha memória."

João António Lamas termina a nossa entrevista de cerca de 2 horas, falando com tristeza sobre o plano de urbanização que estava inicialmente previsto para a freguesia de Benfica: "Foi, mais ou menos, quando se começou a construir o Bairro de Santa Cruz, nessa altura então é que se deu um grande desenvolvimento de construção e que se… Mas está claro, não se fez nada do que estava projectado! O que estava projectado era uma coisa muito boa, era um plano de urbanização de Benfica que tinha sido muito bem estudado (...) Aliás, quem coordenou esse plano de urbanização de Benfica, ele era um primo da minha mulher, que depois foi… Administrador aqui da Gulbenkian, que era um Engº. Luís Lobato… Luís Guimarães Lobato… Esse foi vice-presidente da Câmara de Lisboa e foi quem orientou o projecto de urbanização de Benfica. Era um projecto muito bom porque estava muito apoiado naqueles projectos de depois da Guerra, feitos pelos ingleses… Ao redor de Londres foi tudo arrasado e eles fizeram coisas muito curiosas. E ele aproveitou isso e aplicou ali os mesmos princípios que seguiram lá em Londres. Mas depois foi para a Câmara de Lisboa um senhor, que era o Brigadeiro… Como é que ele se chamava?... Não me lembro agora o nome… Era a quem chamavam o ‘Comandante da Câmara’ e não o presidente, era o ‘Comandante’… Que era, de facto, um individuo que era ‘eu quero, posso e mando’, deu cabo daquele plano de urbanização, mudou completamente tudo, ficou completamente diferente daquilo que estava projectado, porque fizeram tudo quanto queriam e mais alguma coisa… Enfim, sem interesse nenhum e Benfica ficou uma coisa que não é nada, é um bairro… Infelizmente, podia se ter aproveitado como havia ali muito prédio antigo, muito terreno vago, poderia se ter feito um plano de facto bom… e fez-se! E depois não se seguiu nada e fez-se uma coisa, e continuou-se aquilo de qualquer maneira, só para fazer dinheiro e mais nada."


Pode ler esta história de vida na íntegra aqui (a qual faz parte de um projecto mais abrangente que iremos desenvolver numa rubrica intitulada "Gente de Benfica").

4 comentários:

Anónimo disse...

Acho muito interessante que se fale de gente de nome que nasceu ou viveu em Benfica, dando assim o seu contributo para um melhor conhecimento do bairro.
Recordo que, quando morei na Av. do Uruguai, donde saí em 1986, morava no meu prédio, aquele que foi o nosso maior guitarrista: Carlos Paredes. Pessoa tão modesta, de tão grande humildade, que recordo muitas vezes a sua ida à Charcutaria "Pérola do Uruguai" e trazer na mão um saquinho com apenas 2 ou 3 peças de fruta, e sempre com o seu sobretudo um pouco coçado, o seu andar lento, o cabelo crespo. Penso que foi uma honra tê-lo como vizinho.

Cristina Rino

Alexa disse...

Bom dia Cristina :)

E que seja muito bem vinda aqui ao Retalhos :)

Gostava apenas de precisar que este projecto "Gente de Benfica" não versará unicamente sobre gente de nome que nasceu ou viveu em Benfica... iremos, também, entrevistar gente comum, com muitas histórias sobre a freguesia para contar.

Muito obrigada pela sua partilha em relação ao seu ilustre vizinho, Carlos Paredes :)
A "Pérola de Benfica" ainda se encontra no mesmo local... mais um ícone de Benfica... mas, desta feita, para acompanhar os tempos que correm, começou a servir refeições para fora (um "upgrade" importante para a manutenção do comércio local, diga-se de passagem :)

Bjs

Unknown disse...

5 estrela a rubrica!

fausto castelhano disse...

Gostaria que a rubrica "Gente de Benfica" tivesse lugar nos Retalhos de Benfica com uma maior frequência! Antes que todos aqueles que nos possam fornecer elementos dignos de registo na memória colectiva da Freguesia de Benfica se vão, aos poucos, desaparecendo do nosso convívio!