Todos os direitos reservados @ Fausto Castelhano, "Retalhos de Bem-Fica" (2010)
"Marijú, o Café esquecido"
(ou quando o “Calminhas” rachou a cachola ao Joãozinho)
(por Fausto Castelhano)
Tendo a
Igreja de Nossa Senhora do Amparo como epicentro e num raio relativamente reduzido, era onde toda a vida social da comunidade se desenvolvia. O mundo da Freguesia de Benfica, o seu centro nevrálgico nas décadas de 50/60 resumia-se e situava-se, exactamente, ali.
A igreja, as missas e os seus inúmeros fiéis; o
campo Francisco Lázaro e o ringue Fernando Adrião; a “
praça de levante” na Avenida Grão Vasco;
O
Teleclube, do padre Álvaro Proença, instalado no edifício do Patronato Paroquial;
As tascas, a do Sr. João (frente ao Chafariz Grande) e a outra, na Travessa do Rio (taverna/carvoaria onde, hoje, é o Restaurante
“A Travessa"). Nesses recantos, jogavam-se os inevitáveis matraquilhos e o “negus” (uma variante de Snooker, mais pequeno, cinco buracos e um pivot);
O
cinema no salão ou no ringue de patinagem (no Verão) da sede do Benfica (sempre com dois filmes, afora as Actualidades do famigerado SNI), na Avenida Gomes Pereira;
"Estrada de Benfica – Igreja – Vista panorâmica do centro da Freguesia" (1970)
Fotografia de João Brites Geraldes, in Arquivo Municipal de Lisboa
Os cafés, mesmo ali, à discrição: o
"Paraíso de Benfica", do
Sr. Manuel Madureira e a
"Adega dos Ossos" com a sua
Junk-Box; eventualmente, e só para beber a “bica” ou bebericar a cervejola da ordem, no
"Girassol" (com a sua pequeníssima esplanada no passeio); um pouco mais afastados, a Cervejaria
"Estrela Brilhante" e a
"Regional".
Porém, subitamente, algo se alterou na pacatez do burgo. E qual era a espectacular novidade que tanto alvoraçou as gentes do povoado?
Um novo e atraente Café (onde, hoje, é o Estabelecimento
"Fica-Bem"), mesmo ao lado do adro da igreja:
“Café Marijú”.
Ena, pá! Que nome tão catita…
Esplanada à porta (ocupando parte do passeio frontal), provida de mesas e cadeiras (novinhas em folha) e, a toda a largura da fachada, um toldo modernaço onde estava escarrapachado:
“Marijú”… Tudo, tudo, “nos conformes”!... Um local “barilaço”, escolhido a dedo!... Era o máximo, na verdadeira acepção da palavra…
Ponto estratégico, por excelência, para quem pretendia, com olhinhos de ver, apreciar às miúdas que por ali passavam, especialmente as que frequentavam a Igreja, assistiam às missas ou pertenciam às Juventudes Católicas. Moças muito requestadas. Com muita delicadeza, lançavam-se os piropos da ordem. E, àquelas que desciam dos “amarelos” (a paragem da carreira Nº 1 era em frente da esplanada) eram, também, contempladas com o mesmo tratamento. E neste importante pormenor, éramos muito delicados, respeitadores e… nenhuma jovem era discriminada…
"O cruzeiro do Adro da Igreja de Benfica" (s/ data)
Fotografia de Judah Benoliel, in Arquivo Municipal de Lisboa
Na verdade, o
“Marijú” era outra loiça! Da “finaça”… está claro…
Largueza de espaço, empregados muito compinchas (alguns eram do Café
"Paraíso de Benfica", já que o
Sr. Manuel Madureira era, também, o proprietário do
“Marijú”) e depois, um grandessíssimo estoiro: bilhares! Nem mais! Aquelas mesas de madeira polida com os correspondentes panos verdes, aveludados, e as bolinhas luzidias, oh! Uma raridade de “encher o olho”.
Enfim, era um luxo desmedido que nos deixava, a todos, estarrecidos e de cara à banda…Realmente, para quem estava afeito aos matraquilhos, a extravagância era, efectivamente, um requinte de arromba… E depois, aquele toque de bizarria ao besuntar a ponta do taco com o cubinho azul, uma espécie de giz!... Aí, sim… Era a quinta essência da barbatana! Sim, senhor! Benfica, finalmente, acertava o passo com a modernidade…Já não era sem tempo!
Resolvemos arriscar e… fomos experimentar…
Desajeitados, não se conseguia acertar uma. Não era, decididamente, o nosso
“métier”. Uma lástima, não obstante, aguentava-se por distracção, saudável convivência (acima de tudo), e aproveitava-se a oportunidade para rever os últimos acontecimentos.
“Calminhas” era de estatura franzina. Tinha “repentes”. Imprevisível! Em mim próprio, deixou a sua marca indelével, na cabeça e num braço. Ainda na Primária, atirou-se ao Victor Louro como gato a bofe e… afinfou-lhe uma brutal dentada na bochecha. Assim, tal e qual… Não falhava!
Naquele malfadado dia era a vez do “Calminhas” segurar o taco e praticar aquela novíssima arte… O taco devia ser zarolho. De cada vez que “tacava”, a bolinha escapava-se à toa, ou então, falhava redondamente colocando, em sérios riscos, o pano verde… Não havia jeito de engrenar… Bom, depois, à volta da mesa de jogo, rebentava a risada geral. Gozava-se o prato… em grande!
Joãozinho, jovem como nós, vivia com a avó na Travessa dos Arneiros. Gente fina, da melhor linhagem do povoado. O moço não tinha nada a ver com o naipe de matulagem que se divertia por qualquer laracha que lançassem para o ar. Porém, tal como outros jovens, aproximava-se, contagiado com tanta alegria e boa disposição daquela “gajada porreiraça”. Galhofávamos, à “fartazana”, açambarcando as atenções de todo aquele espaço de jogatina.
"Estrada de Benfica, Nº 662" (1961)
Fotografia de Artur Inácio Bastos, in Arquivo Municipal de Lisboa
Café Marijú – Ao lado do Adro da Igreja onde, hoje, está o Estabelecimento Fica-Bem. A paragem do eléctrico da Carreira nº 1 era em frente ao café. A esplanada com as cadeiras, mesas e o toldo.
Joãozinho teve muito azar e nunca imaginou o sarilho “das arábias” onde se foi enfiar.
Quando o “Calminhas” falhou mais uma tacada, Joãozinho desatou na risota convencido, talvez, que estaria entre os seus amigos de confiança. Repentinamente, “Calminhas” ficou com as tripas do avesso”. Cerrou a dentuça, empunhou o taco como se fora uma cachaporra e, com uma violência inaudita descarregou, com a parte mais robusta daquela arma, uma valentíssima bordoada na cachola do infeliz Joãozinho que, de certeza absoluta, até viu as estrelas do firmamento. O sangue, sem “tardança”, espirrou aos borbotões e não havia nada que o detivesse.
No interior do Café
"Marijú" levantou-se, de imediato, um formidável burburinho que, de chofre, alcançou a rua. Clamava-se pela polícia numa tremenda berraria e as gentes, atarantadas, corriam num desatino sem saber como agir…
Completamente atordoado, Joãozinho foi cuidadosamente amparado e levado em braços… "Calminhas”, pé ligeiro como era, saíu disparado porta fora e ninguém lhe conseguiu deitar a unha. O taco ficou rachado e a “matula” deu de “frosques” enquanto o “diabo esfregou um olho”.
Ainda aparvalhado com a inaudita agressão, Joãozinho foi socorrido e levou uma série de pontos na carola.
O
Sr. Madureira, como é óbvio, entrou, aceleradamente, em parafuso com tão degradante espectáculo. A reputação do Café
"Marijú", não podia ser posta em causa “à pala” dum bando de safados!
Entretanto, “Calminhas” desapareceu da circulação durante uns dias (era useiro e vezeiro na táctica) e Joãozinho, durante algum tempo, ostentou um bonito escrito na cabeçorra de razoáveis dimensões.
“Calminhas”, às tantas, reaparece com uma descarada descontracção passeando-se, à vontade, como se não tivesse nada a ver com tão melindroso assunto. Ele era assim, sem tirar nem pôr! Não há notícia de, alguma vez, ter sido incomodado… Tinha artes de se safar, sorrateiramente!

"Estrada de Benfica - Igreja" (s/ data)
Fotografia de Eduardo Portugal, in Arquivo Municipal de Lisboa
Café Marijú – E lá estão as cadeiras, as mesas e o toldo. A tabuleta da paragem do eléctrico da Carreira nº 1, está lá, quase no topo da copa da árvore (ulmeiros).
Aos poucos, “Calminhas” começou a entrar no Marijú, nas calmas e ar escarninho, como se fosse um rapazinho de coro sem qualquer mácula. Os empregados, bons rapazes, miravam-no um bocado de través… aguardando qualquer cena de faca e alguidar. “Calminhas” assobiava p’ró lado e… fazia-se desentendido…
Estabelecimentos "Fica-Bem"
Fotografia de Fausto Castelhano (2010)
Era, exactamente aqui, que existiu o tão badalado Café "Marijú".
Para nós, o bilhar terminou naquele dia, mas estou em crer que o encanto do Café "Marijú" acabou por se perder sem a assídua presença, a alegria contagiante e a irreverência daquela “malta brava” à qual, eu próprio, tive a enorme felicidade de pertencer.
Durante algum tempo, o Sr. Manuel Madureira interpelava-me no sentido do “Calminhas” pagar o conserto do taco todavia, nunca soube se, algum dia, acertaram as contas ou não… Tenho a convicção que, mais tarde, acabaram por fazer as pazes…
O Café "Marijú" não teve existência muito longa. Com a revolução urbanística operada na nossa freguesia, julgo que o Café "Marijú" encerrou portas antes da década de 70 do século XX.
Este rocambolesco episódio e outros do mesmo jaez, jamais foram esquecidos e ficaram profundamente gravados, para sempre, no nosso imaginário.
Já lá vão mais de cinquenta anos porém, ao evocarmos a palpitante cena a que nos foi dado assistir garanto, a pés juntos, não resistimos às memórias que nos são tão caras… Nos nossos rostos, é fatal… aflora-nos um largo sorriso de orelha a orelha pela nostalgia dos tempos idos e pelo protagonismo de que fomos eméritos actores…
Uma inconsolável e imensa saudade…